“A imprevisibilidade faz parte da arte” afirma diretora de “O Animal Cordial”
Conversamos com Gabriela Amaral sobre sua estreia em longa-metragens, suas maiores influências para fabricar o slasher estrelado por Murilo Benício e... sexo de louva-a-deus
Por mais que “O Animal Cordial” seja a estreia da diretora no comando de longas-metragens, o nome de Gabriela Amaral de Almeida está longe de ser uma incógnita no meio. Além de ter trabalhado junto de Marco Dutra na adaptação do roteiro de “Quando Eu Era Vivo” – que depois ficaria conhecido do público como “o filme de terror estrelado pela Sandy” – e trabalhado como roteirista de programas globais como “Zorra!” e “Malhação”, a cineasta agremiou uma quantidade considerável de seguidores nos últimos anos graças aos seus curtas, que vão de dramas como “Uma Primavera” e “A Mão que Afaga” ao campo do terror como em “Estátua!”.
Foi esta trajetória discreta, mas consistente que permitiu que ela chegasse ao seu debute no formato mais consagrado do cinema sob um clima de forte antecipação da parte do público, ainda mais depois que foi revelado que sua primeira incursão pelos longas seria um slasher estrelado por Murilo Benício. Produzido pela RT Features de Rodrigo Teixeira e partindo da premissa de um pequeno restaurante que é assaltado certa noite, o filme não nega suas origens, abraçando com força toda a intensidade da sangrenta leva de terrores italianos dos anos 60, 70 e 80 que consagraram nomes como Dario Argento, Mario Bava e Lucio Fulci, mas ao mesmo tempo traça uma relação com esses longas que passa longe da reverência ou da emulação. Muito pelo contrário: por mais que a inspiração estética esteja ali, o projeto traça caminho próprio, se interessando por questões de comportamento e de interação humana no campo do trabalho com toda a intensidade que lhe é permitida e mais um pouco.
Sobre essa particularidade de seu processo criativo, a diretora afirma que pra ela é como montar blocos de LEGO. “Eu guardo uma sensação do que eu senti vendo aqueles filmes e eu quero brincar de fazer um roteiro que produza a mesma sensação” ela comenta em entrevista ao B9, enquanto responde a questão das influências do projeto com mil nomes dos mais diferentes lugares. Sua paixão pelo horror transparece a cada uma das referências citadas, desde os giallos italianos aos livros de Stephen King – estes últimos que inclusive serviram de base para sua tese de mestrado, feito para a faculdade de Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia há mais de uma década – mas este seu carinho não se traduz na tela de forma direta, mas somente inspiracional. Afinal, se for contextual na raiz a coisa fica “chata” de se assistir, como ela bem acrescenta poucos segundos depois.
Foi exatamente esta paixão bastante embasada de Gabriela pelo cinema e a literatura para materializar “O Animal Cordial” que norteou a entrevista abaixo, que passa ainda por questões como o trabalho da diretora com seu elenco, os desafios com o formato do longa-metragem e uma referência um tanto inusitada para construir a intensa cena de sexo do filme.
Eu queria começar voltando a algo que você comentou no final da coletiva de ontem, em que você comentou que os filmes que influenciaram “O Animal Cordial” não servem de referência direta na construção de sua narrativa. Você poderia falar um pouco mais sobre isso, além de relembrar os filmes, diretores e gêneros que você acredita terem sido importantes para a construção do seu projeto?
Eu vou citar um primeiro que é o Robert Altman, que trabalha no começo da carreira com uns filmes que são classificados como drama no IMDb, mas são filmes que trabalham com o terror. Tem o “Uma Mulher Diferente”, que é a história de uma mulher solitária e rica que vê um homem no parque com frio num dia de chuva e leva ele pra casa, numa atitude que a princípio parece ser muito bacana mas depois ela começa a fazer ele de refém. Então essas histórias que se desenrolam no trabalho dos atores, de um texto que podia ser encenado perfeitamente no palco, que tem um espaço de tempo que acontece quase igual ao espaço de apreciação, que não tem muitas elipses, são essas obras dele que acho que influenciam e me levaram a escrever “Animal Cordial”.
Acho interessante isso, ao contrário de outros tantos seu filme não busca a referência com um fim em si mesma, mas sim como uma influência mesmo.
É, e não é busca da referência, na verdade eu busco sentir a mesma coisa que eu senti vendo, eu guardo uma sensação do que eu senti vendo aqueles filmes e eu quero brincar de fazer um roteiro que produza a mesma sensação. Então funciona mais ou menos assim, é tipo montar LEGO, não é contextual na raiz, não pode ser porque senão fica chato.
Eu também vejo influência dos giallos italianos, dos filmes do Lucio Fulci – que eu adoro – e do Dario Argento, Mario Bava, Umberto Lenzi, que são cineastas que fazem muita coisa criativamente com muito pouca grana. O giallo foi um movimento dos anos 60 e 70 e que propunha fazer filmes de terror como os americanos, mas sem a verba dos americanos, então entrava aí a questão da criatividade, da adequação criativa, o “é uma câmera só que tem? Então vamos com uma câmera só”, vamos sugerir mais do que mostrar. Eu acho o “Suspiria” uma coisa absurda de linda, usando as cores elementais. Então eu acho que são cineastas que instigam muita a minha imaginação no artesanato da coisa, desse fazer, eu falo “hmm, é possível fazer isso” a partir deles. Então essa sensação de assistir aos filmes giallo ao longo da vida e vê-los de forma artesanal – e isso tomo como um elogio, acho bom esclarecer – vendo por onde eles foram feitos, conseguindo entender por onde eles foram feitos, me alimentam dessa vontade de fazer também. Não é como assistir o “E.T.” do Spielberg, que é um tipo de cinema que precisa de um aparato técnico que a gente não tem; ele é tão bom quanto o cinema do “Suspiria”, mas o “Suspiria” me motiva a fazer.
Você falou do Bava, eu lembrei aqui que durante a sessão do “Animal Cordial” me vinha à cabeça constantemente um filme dele que eu tinha visto alguns dias antes.
Eu adoro esse tipo de filme, adoro. Adoro e reconheço as marcas do tempo, são filmes que tendem à misoginia, fora o Argento o corpo feminino sempre tende a ser objetificado nessas produções, porque elas faziam parte daquela cultura e não havia um contraponto àquilo. Pra mim, o mais interessante da arte são estes choques de olhares e contrapontos, eu acho isso maravilhoso, dar esse olhar a diversas subjetividades.
Mas voltando à pergunta, mais referências… eu adoro o Stephen King, a imaginação dele como escritor, os mundos que ele cria. A sensação que esses livros me deram durante toda a infância e parte da fase adulta, porque eu estudei ele no mestrado, me fazem querer escrever uma história também, muito por este ato de ver a realidade através de um filtro que não é o real. Então são referências que eu posso citar nessa linha, elas estão tão incorporadas que pra mim elas são tipo aprender a dirigir, você não fica mais olhando pro câmbio pra passar marcha depois de um tempo, mas você já olhou muito, aquilo já está dentro do seu corpo.
E imagino que sua carreira acadêmica analisando o gênero tenha ajudado você a entranhar essas referências ainda mais.
É que eu amo, foi uma desculpa minha. No fim da faculdade eu pensava “Nossa, o quê que eu faço depois da faculdade? Hm, nossa, acho que vou estudar horror”. [risos] Tô brincando, mas foi uma maneira de continuar a estudar aquilo que eu gostava e entrar no mundo adulto de uma forma mais suave.
Este é o seu sétimo projeto como diretora, mas ele é também o primeiro longa-metragem que você dirige. Você sente algum desafio nessa transição do curta para o longa?
Eu acho que não de formato, mas é um desafio de projeto. Não porque ele dure mais, mas no longa eu me sinto mais à vontade, tenho mais tempo de desenvolver as coisas, tenho mais tempo pra entender como aquela equipe funciona no set, tenho mais tempo pra aprofundar as relações entre os personagens, eu acho tudo melhor que o curta. O curta é um negócio muito angustiante, porque você tem pouco tempo pra entender o que é um set de filmagem e quando você começa a entender ele acaba. O longa não, ele tem um tempo mais dilatado que me cai muito bem. Agora, houve um desafio de projeto no “Animal Cordial”, é uma história difícil de filmar. Eu acho que nenhuma história é fácil de se filmar, eu acho que cinema nunca é fácil, porque você tem que estar num estado de concentração e relaxado pra permitir que a criatividade venha, mas ao mesmo tempo você está restrito a uma rotina muito rígida de trabalho, de tempo de convivência, de tempo de produção. É um equilíbrio delicado, e sendo um filme que tocava em temas tão à flor da pele, nesses personagens e através desses atores, era um desafio manter o set muito tranquilo, porque se a gente entra na vibração da história no fim a gente estava se matando porque estávamos numa mesma locação.
E imagino que você tenha tido mais tempo com esse filme que os curtas também, até porque ele vem sendo desenvolvido desde 2015.
Ah sim. Curta é corrida de 100 metros, eu acho um formato bem complexo.
Entrando no filme agora, eu acho interessante como você o constrói quase sempre em planos mais fechados, mesmo quando as cenas aproveitam do cenário dá pra perceber que ele é uma produção baseada no trabalho do ator, como você bem colocou. O que levou a você a decidir a conduzir a narrativa desta forma?
É uma decisão que deriva da interpretação de cada cena, pois cada cena tem que causar uma sensação no espectador, e a proximidade da câmera, que tem a ver com clausura e desmembramento, que são elementos centrais da cozinha; a cozinha é um espaço completamente sem cor, cinza, onde os personagens se relacionam através dos eixos do olhar e não pelo espaço, então você nem sabe direito onde eles estão lá dentro e isso nos permite criar uma espécie de não-lugar, que é onde o corpo tá tão colocado de qualquer jeito que é como se não desse pra filmar o corpo no espaço, então a gente só filma o pedaço, só filma uma cabeça; é a nossa visão do que é a clausura, é uma visão artística do que é estar preso. É perder a referência. Há uma alternância também com planos bastante abertos e de composição que evidenciam essas trocas de espaço, os personagens vão de corredor pra cozinha e pra sala, então tem uma mise-en-scène de quadro aberto que tem por objetivo mostrar essas trocas de espaço dramático e essas mudanças de personagens dos espaços. Mas é isso, acho que tem a ver com esses dois temas mesmo, alienação do corpo em relação ao espaço – porque o prisioneiro sofre, né – e desmembramento.
Na coletiva, o Humberto Carrão comentou que você às vezes mudava no set o caminho do personagem nas cenas, você dizia pro ator uma coisa antes e na hora falava outra. Você pode comentar um pouco mais sobre isso?
Sim, porque às vezes o que acontece é que como o texto é muito visual e bastante criativo, quando você está dirigindo uma cena às vezes você vê que depois de tanto envolvimento com o texto de repente aquela fala já não se precisa mais, de repente você percebe que aquele personagem não tá naquela temperatura mas tá em outra, e aí você tem que arriscar mesmo. Por isso que a confiança prévia nos atores é importante, porque se um diretor fala “Não, vamos por esse caminho agora”, isso tá na chave da improvisação mas não é uma improvisação aleatória, não é “vou filmar aqui pra ter material pra montar”, eu vou filmar isso aqui porque eu tô com uma intuição muito forte de que é aqui, e se o ator tá com você ele vai. Porque se o ator desconfia do diretor… não funciona, ou ele executa de forma a se proteger ou, enfim, você cria um ruído.
Como os atores reagiam a essas mudanças?
Eu acho que é bem normal do ofício, da relação entre diretor e ator. Não foram grandes mudanças.
Curioso, porque pela declaração do Carrão na coletiva elas pareceram ser drásticas.
É porque são mudanças na intenção, e pro ator a mudança na intenção, na fogueira da emoção é muito grande, é muito substancial. Se eu falo pra você pra entrar nessa sala com a intenção de matar uma pessoa e aí na hora de filmar eu mudo e falo pra você entrar com a intenção de tomar um café, isso muda completamente a maneira como ele vai dar a fala, como ele vai andar, como ele vai reagir… então isso é uma grande mudança. E às vezes essas grandes mudanças eu guardo pro set. Eu intuo elas nos ensaios e penso “vou guardar isso aqui”, porque nunca é bom deixar um ator muito seguro. Ninguém muito seguro é bom.
Especialmente em horror, certo?
Não, em arte mesmo, porque você entra no caminho da execução e isso pode deixar a obra chata. Então é sempre muito bom você estar investigando e ir pro set com algum ruído, alguma dúvida, porque o pouco tempo que você tem pra decidir vem umas soluções do arco da velha de composição de tudo que eu acho que é o mais bonito. Sabe, aquela sensação de “meu Deus, isso não estivesse aqui neste lugar e neste exato momento” ou “se eu não tivesse vivido tudo o que eu vivi, eu não teria chegado a essa resolução”. Não é uma solução em tubo de ensaio, é uma solução que vem na hora que ela tem que vir.
Seria muito absurdo dizer que você prefere esta imprevisibilidade à previsibilidade? Ainda mais com tudo que foi conversado até aqui?
Olha, eu acho que a imprevisibilidade faz parte da arte. E eu sou uma diretora bastante coreografada na verdade, eu não acho que a improvisação é algo que você pensa imediatamente quando você vê um filme meu. Mas é isso, esse aparelho de controle… é como você organizar a fala, eu estou aqui falando com você e eu não estudei pra fazer isso, sei lá o que eu estou falando, mas as coisas estão se concatenando, a gente está se comunicando. Acho que é a mesma coisa quando você está fazendo um filme ou escrevendo um romance, por mais que você planeje, este planejamento tem uma hora que meio que tem que embolar e jogar fora, porque é como jazz, não é que você não estude ou não entenda, mas a beleza da execução de um jazz no instrumento é isso, é a imprevisibilidade previsível da coisa, uma frase musical ela faz um floreio completamente não mapeado pela sua expectativa pra chegar no sentido daquela melodia.
Vendo o filme, eu não deixei de reparar que você foca bastante atenções nas relações de trabalho entre os personagens, especialmente as desenvolvidas entre os personagens do Murilo Benício e a Luciana Paes. Isso é algo que está presente desde a gênese do projeto ou foi algo que foi sendo assimilado aos poucos dentro dele?
Não, foi do começo. Eu acho que a primeira relação que eu tracei foi a relação de amor entre os dois. Foram os dois primeiros personagens que surgiram no roteiro.
Eu queria terminar perguntando exatamente sobre o ápice dessa relação, que é a cena de sexo entre os dois. Como essa cena surgiu e como foi o desenvolvimento dela com os atores?
Ela é coreografia, dança. Eu sou bailarina, fui bailarina flamenca por um tempo, fiz curso de dança a minha vida inteira, e os apontamentos do que devia se mostrar nessa cena desde o roteiro, que eu imaginei dois louva-a-deus… você já viu louva-a-deus fazendo sexo?
Não. [risos]
É muito ângulo e quando a fêmea termina de fazer sexo ela come a cabeça do macho. Então ela tá ali não pra gente ver uma cena de sexo, ela tá ali pra gente ver o lado interno dos personagens que estão ali. Uma coisa que é linda em drama é que a superfície da cena nunca corresponde ao que você quer dizer, é mais ou menos essa a equação. Então foi uma cena totalmente coreografada. Foi um dia de filmagem, bastante cansativo, que exigiu muito fisicamente, eu acho que cena de sexo é a coisa menos erótica que existe pra filmar porque é muito cansativo, é um negócio repetitivo, repetitivo e repetitivo porque só de posição de câmera são umas seis. Então até achar a temperatura dos corpos juntos vamos aí umas cinco, seis vezes, uma de cada posição, então é um troço exaustivo. Foi incômodo pra eles porque aquele sangue era feito de mel e eles ficavam grudados… mas o que garante que ela seja feita é esse caratê coreográfico.