- Cultura 10.dez.2018
“Mogli – Entre Dois Mundos” cria dois universos essencialmente violentos
Filme apresenta versão mais sombria e violenta para "O Livro da Selva"
Há uma longa cena até que sejamos apresentados aos créditos de “Mogli – Entre Dois Mundos”. Após uma violenta batalha na selva, uma pantera encontra uma criança e, em vez de matá-la, a leva até o conselho da floresta. Lá, os animais líderes da comunidade debatem sobre a permanência do humano na selva. Os lobos e a pantera querem protegê-lo, mas o tigre, que é o ser mais cruel da região, quer devorá-lo. Desde o primeiro fotograma do filme, Mogli está em perigo, e só quando o conselho finalmente decide deixá-lo viver e aprender com os lobos, é que finalmente são projetados os créditos de “Mogli – Entre Dois Mundos”. É como se os créditos de abertura da obra fossem a sentença de vida daquele ser que esteve a uma mordida da morte.
Essa introdução, que apresenta o cenário e os personagens antes mesmo de anunciar o filme, é um retrato muito eficiente do mundo que Andy Serkis quer construir com seu “Mogli”. É uma selva bem distante da que usualmente é retratada em fábulas e animações infantis. Não é apenas a figura antagonista que põe a vida do protagonista em perigo, mas todo o ambiente. A própria rotina dos animais, que Mogli precisa seguir por viver com eles, é repleta de atividades perigosas.
Não é apenas a figura antagonista que põe a vida do protagonista em perigo, mas todo o ambiente.
A visão de Serkis, porém, não é de um mundo essencialmente cruel. A selva de “”Mogli – Entre Dois Mundos”” é um espaço organizado, que respeita suas hierarquias, leis e tradições. É harmônico. A fotografia de Michael Seresin respeita muito essa harmonia, criando planos com a câmera próxima ao chão, tendo a imagem geralmente atravessada por folhas de plantas. É um cenário contemplativo e belo; que usa, muitas vezes, uma luz dourada para glorificar a harmonia daquele ambiente. A violência existe em virtude da natureza dos seres – tanto animais quanto humanos. Há, porém, uma ética que norteia os personagens.
Ao criar esse mundo, fica fácil para Serkis fazer com que Mogli não pareça pertencer ao lugar e evidenciar que a jornada do protagonista é justamente para encontrar sua identidade. Imagens do personagem principal correndo pela selva, tentando acompanhar seus irmãos e amigos lobos, são usadas em diversos pontos, sempre destacando como o protagonista encontra empecilhos onde os animais não encontram – se os lobos passam correndo livremente por um trajeto, Mogli é retardado por folhas, galhos e outros objetos. O reflexo disso é uma aparência sempre suja ou ferida para o protagonista, como se sua existência na selva fosse, por essência, algo tortuoso.
A ideia dessa primeira metade da projeção é estabelecer essa sensação de “não pertencimento” para, posteriormente, trazer o personagem conquistando seu espaço. É a partir daí, infelizmente, onde “Mogli” começa a escorregar. Personagens extremamente superficiais e acontecimentos muito apressados impedem que haja qualquer drama na brusca mudança de vida de Mogli, que é obrigado a abandonar sua família. Na tentativa de desenvolver a busca por identidade de seu protagonista, “Mogli” esbarra em uma sucessão de cenas verborrágicas e expositivas nas quais surgem personagens que parecem existir apenas para explicar tudo, tim-tim por tim-tim, para o público – paralelamente, o próprio Mogli assume uma postura passiva pouco condizente com seu papel protagonista; é um personagem que muito ouve e pouco fala.
Serkis e os roteiristas Rudyard Kipling e Callie Kloves parecem tão fascinados com o lindo visual criado, que se esquecem de que o que torna aquela trajetória realmente relevante são os seres vivos daquele mundo. Parece haver pressa para reinserir a narrativa na selva e logo abandonar o núcleo humano, algo que impede que possamos ter uma ideia de quais são as semelhanças e diferenças que definem esses dois universos.
O visual, claro, não é o problema; é muito bem feito, na verdade. Mesmo que os animais tenham, no geral, um visual muito caprichado, a narrativa nunca almeja fazê-los parecer animais reais. Há muitas concessões. Há uma fuga da realidade presente em pequenos gestos, como um tigre que praticamente coça o queixo com sua pata, como se ela fosse um braço. O problema mesmo é que tais personagens parecem não ser capazes de ir além de arquétipos do mito do herói. Há o mestre, a figura paterna, o vilão… Todos se atém demais às características típicas de cada um desses arquétipos. O vilão vivido por Benedict Cumberbatch, por exemplo, só está lá para representar o perigo, mas é um personagem demasiadamente superficial. Já a serpente interpretada por Cate Blanchett parece ser apenas um meio de o filme explicar coisas para o espectador.
O filme estabelece uma sensação de “não pertencimento” para depois proporcionar a conquista do espaço.
Há uma queda de qualidade enorme na segunda metade de “Mogli – Entre Dois Mundos”. O filme parece não funcionar fora da floresta. Os bem interpretados animais e a cativante selva apresentados na primeira metade dão lugar a um vilarejo sem personalidade, com personagens que parecem não ter nada a dizer ou representar. Fica nítido desde o início questão um lugar de passagem, e que Mogli jamais criará laços ali, e o roteiro não faz nenhum esforço para atenuar essa situação pelo menos tentando construir um laço entre Mogli e os humanos. É um lugar que serve apenas para reafirmar que o lugar do menino é na selva, mas isso já fica estabelecido desde a primeira cena, quando Mogli é colocado em uma jaula, ambiente que nunca esteve quando entre os animais.
“Entre Dois Mundos” talvez seja a adaptação mais sombria da obra “O Livro da Selva”. Serkis abre mão da inocência que é essencial para os filmes mais populares que adaptaram a história, inserindo em seu lugar um cenário mais violento e sombrio. Mogli precisa encontrar seu lugar não para simplesmente ser uma “criança feliz”, mas para ter o direito de viver. Serkis faz da trajetória do menino lobo uma jornada pela sobrevivência. A Mogli, resta encontrar seu lugar no mundo e lutar por ele. É elogiável esse esforço por tirar o cânone da zona de conforto, mesmo que no meio do caminho, o filme, bem como o próprio Mogli, encontre alguns percalços.