- Cultura 25.dez.2018
“Bird Box” subaproveita drama sobre maternidade na mesma proporção que o terror
Boas intenções não salvam adaptação de uma conclusão com problemas de tom
Histórias pós-apocalípticas sempre são uma ponte para seu autor falar sobre o mundo que o cerca. No interessante mas irregular “Um Lugar Silencioso”, John Krasinski parte da premissa de um mundo onde apenas o silêncio absoluto pode garantir a sobrevivência para falar sobre a incomunicabilidade nas relações familiares. Enquanto o longa de Krasinski tem a exclusão da fala como mote, “Bird Box”, a obra que adapta o livro de Josh Malerman, parte da exclusão da visão para discutir os desafios da maternidade.
A trama se divide em dois segmentos. O primeiro é com o mundo pós-apocalíptico já estabelecido. Malorie (Sandra Bullock) e seus dois filhos, “Menino” e “Menina” se preparam para embarcar em uma viagem de dois dias por um riacho. A viagem, pelo fato de o mundo já ter sido tomado pelos misteriosos seres que induzem quem os vê ao suicídio, precisa ser feita inteiramente com os olhos vendados. O outro segmento acontece quatro anos antes, quando o mundo começa a ser impactado pela chegada dos seres, e Malorie ainda é uma mulher grávida que vive uma rotina normal. Esse segundo segmento vai do dia do “ataque” até o momento em que a personagem se encontra isolada, à beira do riacho.
Apesar de não ser o tema central, a incomunicabilidade também é discutida em “Bird Box”. Uma das primeiras cenas da protagonista acontece justamente em um momento no qual a personagem pinta um quadro que traz várias pessoas em uma mesa, todas isoladas e aparentando estar emocionalmente impossibilitadas de se comunicar entre si. O quadro, como toda arte, diz mais sobre a sua artista do que qualquer outra coisa. Malorie é uma personagem com sérios problemas de interação social. Grávida e prestes a se tornar mãe solteira, o único ombro amigo é sua irmã, Jessica (Sarah Paulson).
Em “Gravidade”, de Alfonso Cuarón, Sandra Bullock já havia interpretado uma protagonista que precisa lidar com questões relacionadas à maternidade e à superação dos problemas. Em “Bird Box”, a diretora dinamarquesa Susanne Bier faz a atriz voltar a protagonizar uma obra sobre o tema, mas dessa vez, Bullock encarna uma personagem que precisa aceitar sua maternidade. É como se Malorie não quisesse ser mãe e, por isso, rejeitasse seu posto – talvez por não se sentir preparada, talvez por não ter mais seu companheiro ao seu lado.
A fotografia e a direção de arte do filme constroem um cenário escuro e acinzentado para cimentar a ausência de afeto
Essa rejeição da maternidade se faz presente desde o começo. Na cena pós-apocalipse que traz nosso primeiro contato com a personagem, Malorie se comunica com os filhos de maneira ríspida, apresentando um comportamento que aponta uma criação intransigente e controladora, mesmo que seja dessa forma por ter um instinto de preservação das crianças. Aqui, destaca-se a fotografia e a direção de arte do filme, que constróem um cenário escuro e acinzentado para cimentar essa ausência de afeto.
Na cena pré-apocalipse, a protagonista enxerga sua vindoura maternidade de forma similar. O quadro pintado mencionado anteriormente já escancara sua situação emocional: é uma personagem isolada, com dificuldade de se conectar. Aqui, o roteiro é feliz ao utilizar a figura de Jessica como expositor da situação da protagonista. A irmã “coruja” a todo momento demonstra preocupação com o ambiente bagunçado em que Malorie vive, que está longe do ideal para criar uma criança. Pelos questionamentos de Jessica e pelas respostas evasivas de Malorie, “Bird Box” consegue estabelecer com precisão o desleixo da protagonista e a importância de sua irmã como ponte entre a personagem de Bullock e o resto do mundo.
O filme sucumbe à falta de tato da direção para escolher um rumo e segui-lo
Ao tentar amarrar os relacionamentos de Malorie com o restante do elenco, porém, “Bird Box” cai em armadilhas muito óbvias do cinema do gênero – como, infelizmente, “Um Lugar Silencioso” também fez. Por boa parte da projeção, a protagonista se vê trancafiada em uma casa com um grupo de sobreviventes, e é ali que o terror, de fato, acontece. O problema é que os personagens com quem a grávida interage são tão genéricos e esquemáticos que é difícil criar qualquer tipo de afeto. Metade desses personagens existe apenas para explicar, tim-tim por tim-tim, tudo o que o público precisa saber. No ato central da obra, portanto, há uma verborragia de diálogos expositivos que existem apenas para mastigar a trama. É triste que um filme de terror, gênero que lida com o desconhecido, com o mistério, seja tão dependente de um elemento tão anti-climático quanto um roteiro expositivo.
O saldo final de “Bird Box” é um filme cheio de boas intenções e ideias – o riacho como uma metáfora para a vida e suas dificuldades é, mesmo que bem simplório, algo bonito e bem executado –, mas que sucumbe à falta de tato de sua direção para escolher um rumo e segui-lo. A adaptação da obra de Josh Malerman é um filme perdido entre uma experiência de terror direta (forma) e o drama sobre maternidade (conteúdo). Nessa divisão, quem acaba se sobressaindo mais é a forma, fazendo com que o conteúdo do filme, mesmo que belo, seja simplificado e subdesenvolvido.
Ironicamente, o riacho percorrido por Malorie e seus filhos, em dado momento, acaba se tornando uma metáfora para a própria experiência de se assistir a um filme “perdido”. Assim como o trio que está no barco, nos vemos à deriva e de olhos vendados, sem ter a menor ideia de para onde aquela obra está nos levando tematicamente – mesmo que a conclusão da história seja a mais previsível possível. Afinal, “Bird Box” utiliza o terror sempre que precisa criar alguma tensão, mas o coloca de escanteio sem nenhum pudor nos momentos chave da narrativa.
Diferente de “Um Lugar Silencioso”, que chega ao drama sem sair do terror, “Bird Box” está constantemente num movimento de vai e volta em que os dois gêneros ocupam lados opostos que nunca se encontram. Impossibilitada de construir um meio-termo que faça a forma trabalhar em prol do conteúdo, Susanne Bier entrega um filme que até apresenta sequências interessantes, mas que nunca as utiliza para efetivamente desenvolver suas ideias. Em “Bird Box”, o terror é apenas uma desculpa para chegar a algo que, na visão dos realizadores, parece ser maior do que o próprio gênero, uma ideia tão equivocada quanto as teorias de que um “terror com metáforas” seria meta-terror ou pós-terror. Na verdade, o terror sempre teve e sempre terá o potencial para contar histórias grandiosas, e colocá-lo de escanteio em seu clímax, após utilizá-lo como recurso por boa parte da projeção, como faz “Bird Box”, é uma atitude um tanto quanto covarde.