"Deuses Americanos" retorna aproveitando o que há de melhor na série

“Deuses Americanos” retorna aproveitando o que há de melhor na série

Estreia da segunda temporada se aprofunda na importância de Shadow Moon e apresenta conflito principal do novo ano

por Matheus Fiore

Após o sucesso da primeira temporada de “Deuses Americanos”, o futuro do programa baseado na obra de Neil Gaiman parecia incerto. Mesmo com o sucesso de crítica e audiência, as filmagens do segundo ano da produção foram extremamente conturbadas, envolvendo até mesmo a demissão do showrunner durante o processo. Surpreendentemente, os problemas parecem não ter interferido tanto no resultado da série. Pelo menos é o que o episódio “A Casa na Pedra”, que abre o segundo ano, nos mostra.

Acompanhamos a jornada de Shadow Moon, Odin, Laura e Mad Sweeney logo após os eventos que encerram a temporada de estréia do seriado. Após declarar guerra contra os novos deuses (grupo que traz Mídia e Technoboy e é liderado por Mr. World), Odin agora marca uma reunião com os deuses antigos para discutir uma estratégia para vencer o confronto. Paralelamente, Mr. World e seus aliados planejam um ataque, como forma de resposta à ofensiva de Odin que fechou a temporada anterior.

“A Casa na Pedra” já abre trazendo um dos melhores elementos do ano um da série, que é a interação entre os personagens durante suas viagens. A primeira temporada inteira se construiu sobre o formato “road story”, com Odin e Shadow Moon viajando pelas estradas da América, enquanto o deus nórdico despejava, aqui e ali, algumas pistas sobre sua real natureza e intenções. Portanto, o que temos no ano inaugural de “Deuses Americanos” é uma série que nos apresentava às diferentes divindades em um formato de exposição, como se cada uma fosse uma diferente atração de um parque. É um modelo um tanto quanto engessado, mas necessário para que todos os personagens possam ser contextualizados na saga principal, guiada por Shadow Moon.

Sem a necessidade nem a preocupação de ambientar seus personagens, “Deuses Americanos” vai direto ao ponto em “A Casa na Pedra”. O episódio, como toda a mitologia da série, é construído em torno da crença de seu protagonista. É, aliás, um seriado que depende muito da crença de Shadow Moon, já que é a fé dele que permite que as divindades e seres místicos tenham ou não força. A direção acertadamente aproveita isso, nos mostrando curtos planos que mostram o olhar atento de Odin enquanto Shadow fala sobre fé e realidade, mostrando como o deus nórdico mantém um olhar atento para garantir que seu “pupilo” mantenha sua crença no deus para que, então, esse deus possa manter sua força.

É interessante essa questão da fé como elemento transformador da realidade. Nos cinemas, há uma trilogia que trabalha muito bem a temática, a composta por “Corpo Fechado”, “Fragmentado” e “Vidro”, de M. Night Shyamalan. Na saga cinematográfica, porém, a fé existe como meio de transformação dos próprios personagens, ou seja, na transformação do físico em metafísico, enquanto em “Deuses Americanos”, mesmo que isso aparentemente seja possível, o foco é mesmo na fé como uma porta, que permite que o metafísico venha ao físico.

Diferente da primeira temporada, quando a crença de Shadow Moon ainda era um elemento a ser construído por Odin, aqui, ela está estabelecida. É interessante, portanto, notar como isso impacta no visual do episódio. Se o ano um de “Deuses Americanos” alternava entre uma fotografia pálida e cinzenta, condizente com o mundo cético do protagonista, e imagens mais vibrantes e saturadas, representando o fantástico presente em pequenas doses, “A Casa na Pedra” é um episódio cheio de cores já desde o começo.

Nem só as cores de luz e direção de arte estabelecem essa vivacidade, mas também a montagem e os movimentos de câmera. No episódio, temos cenas muito mais dinâmicas, algo que acontece tanto pelo uso de mais cortes e personagens que dialogam de forma mais direta e se movimentam bastante pelo cenário, como também pela filmagem, feita com planos com bastante movimento. Alguns movimentos, mesmo que sutis, são importantes e entregam qual o foco do capítulo, que é a fé que permite que os deuses existam. Não é por obra do acaso, por exemplo, que a câmera lentamente dê zoom no rosto de Shadow Moon quando Laura pergunte no quê o personagem acredita. Há um capricho para que o espectador mantenha-se ligado nesse conflito que permeia os pensamentos de Shadow.

Sobre essa relação de fé e realidade, a casa na pedra que dá nome ao episódio é uma bela metáfora para toda a situação dos deuses. Um lugar criado simplesmente como hobby de uma pessoa e que acabou se tornando uma atração gigantesca, uma espécie de museu/parque de diversões. O que permitiu que o lugar se tornasse algo grandioso foi justamente o fato de as pessoas acreditarem e consumirem ele; o fato de as pessoas frequentarem regularmente. É, portanto, um lugar fortalecido pela crença em suas qualidades, assim como é a relação entre os deuses e seus fiéis.

É um elemento bem trabalhado também a relação de Shadow Moon com os deuses, que dependem dele para ter forças. Quando Odin e outras figuras místicas sobem em um carrossel que os levará para o cenário onde acontece a reunião, por exemplo, o trajeto só pode ser feito com a presença de Shadow Moon, mostrando como o personagem mantém-se, desde o ano anterior, como esse elo que leva os deuses do físico para o metafísico e vice-versa. Aliás, não é por acaso que também seja de Shadow Moon a responsabilidade de, com um discurso que mostra sua crescente fé, permitir que os deuses retornem ao mundo físico após essa reunião, reiterando sua força e a imprescindível necessidade que Odin tem de sua presença.

Capaz de sintetizar bem algumas das principais ideias da obra e, de quebra, ambientar os núcleos que protagonizarão os dois lados do conflito divino, “A Casa na Pedra” é um episódio bem competente e que marca um retorno positivo de “Deuses Americanos”. É também um capítulo que indica uma série preocupada ainda em explorar as diferentes vertentes espirituais de cada personagem e como cada uma delas se choca com a modernidade, que é o elemento antagonista do seriado. Resta aguardar e torcer para que os demais episódios desenvolvam seus temas e personagens com o mesmo carinho.

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