- Cultura 24.mar.2019
“Nós” reafirma as virtudes (e referências) do cinema de Jordan Peele
Segundo filme do diretor não carrega a mesma potência de “Corra!”, mas funciona enquanto exercício de reforço das bases de seu estilo
⚠ AVISO: Contém spoilers
Desde o anúncio de “Nós”, Jordan Peele vem afirmando e reiterando continuamente à imprensa que o projeto teria propósitos distintos de “Corra!”, sua avassaladora estreia na direção com fortes estocadas ao racismo estrutural dos Estados Unidos. A ação teve lá seu lado lógico: considerando o grande sucesso da produção, seria apenas uma consequência natural que o público criasse toda uma expectativa sobre seu próximo projeto, esperando ver na telona uma espécie de “novo Corra!” – e basta observar a gigantesca inundação de comparações a outros cineastas que Peele recebeu na semana de estreia deste segundo trabalho para entender o nível do problema midiático em mãos.
Mas como toda declaração de fins publicitários em Hollywood, este esforço também tem seu fundo falso. Por mais que as duas produções de fato persigam fins temáticos distintos e em nada se relacionem, é difícil não enxergar ecos de “Corra!” dentro da estrutura de “Nós”, mas não pelas vias da questão racial que muito provavelmente todos achavam estar antecipando. Ele é um paralelo a ser encontrado na inversão de perspectiva do tema maior da opressão, que desta vez foge da dinâmica de enquadrar o oprimido como protagonista para colocá-lo na posição de ameaça – uma medida que, claro, só pode levar o espectador a assumir o ponto de vista do opressor, mesmo este não sendo assumido de fato no longa.
Para Peele, que volta aqui a assinar a autoria do roteiro, esta mudança de posição sem dúvida oferece uma abertura de escopo, uma expansão dos temas de exposição da segregação não anunciada da sociedade que na tela se traduz no imenso jogo de duplos da premissa, que segue os percalços da família Wilson para sobreviver ao ataque de cópias desfiguradas de suas próprias pessoas. O que começa como o típico filme de invasão domiciliar, porém, logo toma a forma de outra história de provocações do diretor, conforme a trama vai deixando mais evidente o caráter oprimido destes “gêmeos malditos” e o quanto seu esforço no fundo passa por uma reivindicação de suas próprias vidas.
É a partir desta condição que Peele passa a destrinchar uma alegoria para o Estados Unidos contemporâneo, mas enquanto este duelo dos Wilson com suas contrapartes aterrorizantes de fato ocupa todo o jogo simbólico principal, é interessante observar como o diretor também dissemina esta narrativa de duplicidade de movimentos ao resto do filme sob um viés de semi-revelação dos gestos e costumes. O maior indicativo deste procedimento é o grande prólogo da história, que mostra as origens da relação de Adelaide (Lupita Nyong’o) com estes “outros” na sua infância: antes do primeiro encontro da protagonista com as criaturas, o diretor se concentra em acompanhar ela junto dos pais pelos corredores do parque de diversões litorâneo, estando atento a toda a ambiguidade entre a violência e o prazer das atrações – a camisa do clipe de “Thriller” de Michael Jackson talvez seja o elemento mais evidente, mas mesmo as reações assustadas da criança à montanha-russa e entusiasmada do pai (Yahya Abdul-Mateen II) à atração “Bate na Toupeira” denotam muito deste desconforto inicial que o longa há de carregar para frente.
O que começa como o típico filme de invasão domiciliar logo toma a forma de outra história de provocações do diretor
Sob este ângulo, Peele não deixa de aplicar em “Nós” um procedimento que é muito similar ao usado por diretores como Larry Cohen e John Landis, cujas produções bebiam das convenções do gênero (especialmente no horror) para revelar idiossincrasias de sua época. Se o diretor realiza o resgate da ação beneficente “Hands Across America” e da passagem e versículo 11 do Livro de Jeremias para reiterar na trama o processo histórico por trás de todo o horror que acomete seus personagens no momento atual, estes retornos não deixam de corroborar uma espécie de grande teoria que ele tem sobre o mal estar social ao qual diagnostica, algo que só ganha corpo quando no terceiro ato a produção se aventura de vez pelos túneis subterrâneos abandonados citados no início do filme.
A questão é: que grande mal estar é este em jogo? É a partir daí que a produção talvez se perca um pouco nos seus propósitos, ainda mais porque ao contrário de suas referências – e do próprio “Corra!” – o longa se mostre um tanto despido de voracidade e acidez na hora de mergulhar em seus temas. Enquanto a trama vai desvendando o mistério e exibindo com maior clareza as ideias por trás da alegoria, “Nós” também revela um pouco de sua falta de especificidade, preferindo a interpretação em aberto ao invés de qualquer confrontação ao que quer que lhe interesse aqui. Não ajuda muito nesta hora que todas as teorizações da produção sejam apresentadas em altas doses de exposição, e o fato das últimas perguntas serem respondidas numa sala de aula é quase uma cereja do bolo a todo este processo.
O equilíbrio do terror com a comédia se mantém como uma das principais potências do cinema de Peele
Nas mesmas entrevistas em que quis deixar exposta a separação temática de seus dois primeiros filmes, Peele também fez questão de reforçar o quanto “Nós” era para ele um exercício de horror mais simples, no sentido dele querer acima de tudo aterrorizar seu público antes de fazê-lo refletir sobre o estado social atual. É exatamente esta ambição “comportada” que no fim guia o projeto: se a estruturação simbólica da história se perde um pouco no genérico, o diretor mantém a atmosfera de seu suspense intacta, tirando todo tipo de tensão de sua trama de perseguição. O equilíbrio do terror com a comédia, aliás, mantém-se uma das principais potências do cinema de Peele junto de sua direção de atores; além do trabalho físico notável do quarteto protagonista – em especial Nyong’o e Winston Duke – a maneira como a narrativa trafega entre o riso e susto nunca soa pontuada e sim colaborativa, numa forma bastante resoluta de manter o espectador sempre deslocado perante os acontecimentos.
Assim, o filme não deixa de funcionar a Peele para reforçar as bases de seu cinema pela utilização de suas referências, algo que é reiterado não apenas no exercício de gênero como nesta reciclagem ocasional de estilos e procedimentos. Voltando à cena da sala de aula, o uso do split focus para mostrar as duas Adelaides expõe de vez a influência dos longas de Brian De Palma na mesma medida que o apoteótico confronto nos corredores lembra um pouco os trabalhos de John Carpenter.
O curioso em meio a tudo isso, porém, é observar como ao contrário de seus contemporâneos Peele prefere manter esta construção formal de seu cinema disfarçada, soterrada por uma narrativa social que talvez atenda melhor os anseios imediatos do público de “confirmar” seu potencial. É uma estratégia que certamente reafirma suas qualidades enquanto diretor, mas também ajuda a escancarar em “Nós” a sensação de um conto de horror muito pontual – o que por sua vez só ajuda a deixar o filme com cara e comportamento de um bom episódio de “Além da Imaginação”, cujo remake por acaso virá das mãos do próprio Peele.