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SXSW 2019: Let’s talk about Brasil (com “s”)
Participação do país no festival reflete o atual estado de caos que toma conta do cenário nacional
“A gente tinha na ocupação o que a gente não tinha na escola”. Foi com essa frase que fiquei na cabeça ao assistir trechos do filme “Espero Tua (Re)volta”, da brasileira Eliza Capai, que falou no SXSW 2019. Foi nítido o empoderamento de Marcela, uma garota de 17 anos, antes e depois do movimento que aconteceu em 2015, onde mais de 200 escolas foram ocupadas por estudantes que lutavam por uma melhor educação. Antes, uma jovem negra que alisava o cabelo cacheado por não saber lidar com o bullying que sofria na escola – da mesma forma que sua mãe, também negra, não sabia. Depois, cabelos soltos com belos lenços e até mesmo curtinho pintado com a cor lilás – mais bonita, mais feminina e ciente de quem é. No filme, ela ainda diz: “Quando você respeita seu cabelo, você respeita a sua família e a luta dos seus ancestrais”. E é possível ver no filme outros estudantes comentando sobre o espaço que tiveram ali na ocupação através de rodas de conversa sobre feminismo, racismo e outros assuntos não discutidos em seus colégios.
O documentário acabou de ser premiado no Festival de Cinema em Berlim e será lançado pela Globonews nesse ano. As cenas são fortes para quem não viveu essa realidade e o debate é mais que válido em um momento onde políticos pedem para os alunos gravarem as salas de aula, no qual livros são censurados por falar de socialismo e diversos debates se fazem sobre a falta do senso crítico de pensamento. O que me remete à fala provocativa de uma outra jovem do filme, Nayara, presidente da União Estadual do Estado de São Paulo: “A escola não ensina sobre os movimentos sociais, não debate as melhores formas de se questionar, de transformar a sociedade… Eles ensinam que se organizar não é o caminho, que é crime inclusive. Imagine se a gente tivesse aula sobre resistência pacífica, black bloc, revolução e liberdade?”.
E eu, dentro da minha bolha social, munida da minha curiosidade de mulher branca, filha de pais de classe média de uma cidade de interior, imaginei: Como seria?
(Você pode parar para tomar um café e pensar antes de continuar o próximo parágrafo, ok?)
Vamos lá, a gente faz parte de uma sociedade que respira Internet, que busca códigos abertos, engajamento e comentários nas redes sociais. E indo mais além da questão da Nayara, como ficaria o papel da Internet nesse contexto? Eu não estou aqui para fazer apologia a partido nenhum, mas sim apologia à conversa, ao debate e à verdadeira discussão. Trabalho com conteúdo digital há mais de 10 anos e sei exatamente o poder de influência que as pessoas têm. As redes sociais se tornam canhões de comunicação para passar uma mensagem, promover um evento ou até mesmo fazer uma campanha política. Porém, torna-se uma grande hipocrisia achar que vivemos em um mundo completamente conectado se não somos capazes de nos conectar de fato com o outro – principalmente com os jovens e as crianças. O futuro reside ali e isso é incontestável. Mas o que eles desejam? E como usar a tecnologia e a mídia a favor desse diálogo – e possível construção do cidadão – e não contra?
Fala-se muito sobre desconstrução de papéis de uma sociedade tecnológica, mas talvez a escola devesse ser o primeiro lugar a ser ressignificado por todos nós, trazendo as plataformas sociais para dentro das salas, os games, aplicativos e os conteúdos dos influenciadores. Revisando o seu discurso e forma de estabelecer contato com os alunos, que buscam a transparência e a confiança nessas relações. E sem receio de discutir assuntos considerados “polêmicos” no passado, afinal, eles estão aí e de fácil acesso, é só dar um Google. Isto me remete a uma palestra da holandesa Jessica Taylor Piotrowski, que assisti na Vidcon 2018. Ela é pesquisadora e referência no assunto sobre o uso do conteúdo para criança e adolescentes, e contou um caso no qual um vlogger na Europa disse que é possível evitar a gravidez se você tomar banho depois do sexo. Novamente estamos falando de educação e informação. Ou você acha que a responsabilidade está só no vlogger?
Sinto lhe informar, mas ele também é fruto desse mesmo sistema de quem acreditou nele. O “problema” é de todos: do Governo, dos educadores, dos pais, dos produtores de conteúdo, das plataformas, do consumidor digital, e meu, inclusive, por atuar nesse mercado. E é preciso amadurecer como indivíduo e sociedade para saber usar a tecnologia e não ser engolido por ela. A mesma pesquisadora conta um episódio onde os pais pedem para o filho não usar celular durante o jantar, ao que ele responde: “você também”. Diálogo – começa em casa. A questão é: até que ponto homens e mulheres, das classes mais altas às mais baixas, estão preparados para entender esse jovem de agora?
A escola deveria ser vista pelos estudantes como um lugar de conhecimento e acolhimento – seja ela privada ou pública. E não um lugar de tiros, como o que aconteceu em Suzano (SP) nesse mês. O que os motivou a cometer os assassinatos? Impossível ter certeza já que ambos morreram no incidente e não estão aqui para contar. O que temos são apenas pistas e suposições. Porém, alarmar o país sobre os perigos dos jogos de “Call of Duty” e “Counter Strike”, na minha opinião, é reduzir muito o tema, além de tirar a responsabilidade de todos nós. Torna-se importante refletir sobre frases como a do vice-presidente da República Hamilton Mourão, publicada no Globo, como: “Hoje a gente vê essa garotada viciada em videogames violentos… Quando eu era criança e adolescente a gente jogava bola, soltava pipa. A gente não vê mais essas coisas. É com isso que a gente tem que ficar preocupado.”. Será?
Eu poderia aqui citar várias pesquisas sobre o assunto de pessoas e instituições que trabalham com o ambiente digital e interativo. A Jessica Taylor, citada anteriormente, tem vários estudos sobre os benefícios dos jogos como estímulo à memória, localização espacial e de relacionamento. Fala também sobre como a gameficação em colégios pode ajudar no estímulo de aprendizado desse jovem. Até mesmo nesse SXSW, acompanhei uma palestra da Ann Hand, CEO da “Super League”, que destacou como o jogo pode estimular o pensamento estratégico e o trabalho em equipe de adolescentes e crianças. Aliás, ela frisou inclusive o interesse de várias escolas em apoiar jogadores amadores nas salas de aula. No entanto, não quero também reduzir a complexidade da discussão. O fato é que todos sempre caem no mesmo ponto: a importância da educação e o papel de cada um para incentivar os bons valores que o game traz. Sim, existe um ambiente ainda tóxico, por exemplo, para a presença das meninas em jogos online – combatido por campanhas de várias empresas do mercado, como a Riot – também presente no SXSW. Existe racismo, xingamentos e atitudes consideradas agressivas nas conversas. No entanto, isso vem dos jogos ou reflete a nossa sociedade? E o que eu e você temos a ver com isso?
Voltando ao filme da Eliza Capai, tem uma cena muito marcante de uma mulher que para o carro no meio da rua por conta do protesto dos estudantes e, nervosa, diz: “Eu concordo com vocês, mas eu preciso trabalhar. Me deixem passar”. E uma das personagens do documentário, em contraposição à cena, cita as mulheres sufragistas na Inglaterra brigando pelo seu direito de voto e as brasileiras que se inspiraram nelas e, consequentemente conseguiram votar, trabalhar e, por que não, ser livre para dirigir um carro. Ela diz: “Pode ser que muitas coisas que hoje parecem normais, no futuro não sejam. E eu peço desculpa por atrapalhar seu dia. Mas a gente precisa que você chegue atrasada no trabalho, comentando que tinha uma molecada lutando porque sua escola seria fechada. Se a gente não tiver o apoio de geral, o ensino público vai perder essa batalha”. Direitos, desejos, informação – estamos todos envolvidos. Enquanto Koka, outro personagem do “Espero Tua (Re)volta”, compara o número de presos versus o de alunos matriculados em São Paulo em 2015: escolas com 2 milhões de alunos a menos, presídios com quatro vezes mais detentos – lugar que provavelmente estariam Guilherme e Luiz Henrique, caso estivessem vivos após o massacre em Suzano.
No SXSW 2018, eu escrevi um texto sobre a mesa emocionante feita às pressas por brasileiros no evento para discutir a morte de Marielle. Após um ano do crime, no mesmo SXSW, evento que busca a inovação e transformação do ser humano, longe novamente do Brasil, vejo a Mangueira sendo campeã lembrando os heróis que a História não conta, carregando no colo uma menina como a guerreira que o país perdeu. Vejo perguntas não respondidas sobre mandantes, discussão sobre injustiças, censuras e um massacre cometido por jovens.
E eu, sinceramente, espero que possamos ver o país diferente no próximo SXSW. Afinal, é preciso apurar nosso pensamento crítico e conversar de igual para igual com todos. O que não dá é para negar que há de se olhar pelos jovens. Há de se cuidar da gente.