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Cannes Lions 2019 comprova: quem lacra, lucra sim
Consagração de peças que abordam temas como igualdade de gênero, racismo e autoritarismo político mostram que a sentença favorita da ala conservadora tem cada vez menos fundamento
O Cannes Lions 2019 mostrou que a indústria da criatividade e do entretenimento segue na contramão do “quem lacra, não lucra”, frase que virou a síntese do pensamento conservador sobre o impacto que, em teoria, marcas e empresas sofrem ao adotar um posicionamento diverso e engajado sobre temas e debates atuais.
Para o maior festival de criatividade do mundo esse posicionamento vale muito. Das 28 categorias principais do festival, 20 prestigiaram com o Grand Prix (premiação máxima do evento) peças que abordam temas como igualdade de gênero, racismo, sustentabilidade, autoritarismo político, representatividade, inclusão social, acessibilidade, entre outras pautas de caráter sociopolítico.
As campanhas contempladas com Leões de Ouro, Prata e Bronze seguem a mesma linha. Uma das ações mais premiadas, por exemplo, foi a peça britânica “Viva La Vulva”, criada pela AMV BBDO para a Libresse a fim de estimular que as mulheres conheçam mais sobre seus próprios corpos, passo fundamental para acabar com tabus e estereótipos. O ode à vulva conquistou 6 Leões de Ouro, 5 de Prata e 2 de Bronze divididos em 8 categorias diferente.
As conquistas de “This is America” (Childish Gambino) e “Bluesman” (Baco Exu do Blues), que dividiram o GP de Entertainment for Music também são representantes importantes da mensagem que essa edição de Cannes Lions nos deixa. As duas obras abordam questões de diversidade, racismo e violência e cutucam feridas sociais dos Estados Unidos e do Brasil, seus respectivos países.
E por falar em cutucar feridas, a série de vídeos “The Truth is Worth It”, do jornal The New York Times é outro (ótimo) exemplo de peça feita para incomodar e fazer pensar. Com 2 Grand Prix nas categorias Film Craft e Film, a campanha criada pela Droga5 mostra a problemática atual de informações destorcidas por governos em diferentes países. Em épocas de fake news, que ajudam até a eleger representantes políticos, nada mais adequado.
Mas, nada é mais representativo nessa edição do festival que a consagração da campanha “Dream Crazy”, da Nike. Criada pela Wieden + Kennedy, a ação levou dois GPs (Outdoor e Entertainment for Sport), mas antes disso causou controvérsia por escolher o jogador Colin Kaepernick como rosto da campanha.
Colin se tornou um símbolo da luta contra o racismo nos Estados Unidos quando, em 2016, passou a se ajoelhar durante a execução do hino nacional antes dos jogos da NFL em protesto à brutalidade policial contra negros no país. O posicionamento do jogador desagradou a ala racista norte-americana, que incomodada com os protestos públicos de Colin passou a pedir sua expulsão da liga.
Quando Kaepernick surgiu como rosto da campanha comemorativa de 30 anos do slogan “Just Do It”, a reação negativa por parte desse mesmo público não demorou. Surgiram tags de boicote à empresa, clientes queimando seus próprios produtos da marca, e uma enxurrada de comentários destilando ódio, racismo e todo o tipo de preconceito nos perfis da Nike nas redes sociais.
Tudo isso poderia representar a consagração do “quem lacra, não lucra”, mas não demorou para o anúncio da marca alcançar números positivos gigantescos. Em menos de 24 horas da publicação da campanha, ela já acumulava mais de US$ 43 milhões em exposição na mídia.
Como destacou Paul Nagy, CCO da VMLY&R (Austrália e Nova Zelândia) e membro do júri na categoria Outdoor, a campanha da Nike “fez um pronunciamento ao mundo. Aquela imagem será ensinada daqui dez anos e não apenas nos livros de publicidade, mas também de História”.
Com tudo isso, “Dream Crazy” nunca dependeu do seu desempenho no Cannes Lions para se tornar o maior case que leva a sentença conservadora da não militância por água abaixo. Mas sua aclamação no festival é extremamente importante para fixar essa mensagem à indústria criativa: “quem lacra, lucra sim”.