- Cultura 26.jun.2019
“Turma da Mônica: Laços” é encantador por acreditar na fantasia de seus personagens
Daniel Rezende adapta clássicos gibis brasileiros com personalidade, respeito e reverência
Adaptar um gibi como o da “Turma da Mônica” é uma tarefa desafiadora. O motivo mais óbvio é o fato de o realizador ter, em mãos, uma das obras mais importantes da trajetória dos quadrinhos brasileiros. Afinal, o universo criado em 1959 por Maurício de Sousa talvez seja a mais cultuada história em quadrinhos de nossa cultura. A dificuldade na adaptação, porém, vai além da pressão e das inevitáveis altas expectativas. Adaptar “Turma da Mônica” implica também em um desafio estético, visto que esse universo em papel traz uma inocência, uma candura difícil de transpor em um live-action.
A tarefa coube justamente a Daniel Rezende, diretor de um dos mais elogiados filmes brasileiros dos últimos anos, “Bingo: O Rei das Manhãs”, que também é conhecido por seu trabalho como montador em “Cidade de Deus”. Rezende confere um olhar extremamente afetuoso para a adaptação da obra de Maurício de Sousa, valorizando tanto a nostalgia evocada pelas referências ao cânone dos gibis, quanto pela doçura alcançada pelo relacionamento entre seus personagens.
“Turma da Mônica: Laços” não parte de uma história original do criador da série. O longa é, na verdade, baseado na graphic novel de 2013 publicada pela Panini e de autoria da dupla de quadrinistas Vitor e Lu Cafaggi. Na história, Cebolinha, Mônica, Magali e Cascão partem em uma aventura para encontrar Floquinho, o cachorro da família Cebola, que está desaparecido. A aventura, porém, revela vários testes que acabam por tornar toda a jornada uma lição sobre amadurecimento e amizade.
Rezende faz escolhas bastante inspiradas pela graphic novel que serve de base para a obra. Em vez de construir um mundo totalmente entregue à fantasia infanto-juvenil ou adequar totalmente sua narrativa a um tom mais realista, o cineasta escolhe transitar em um terreno que puxa um pouco dos dois polos. Se, por um lado, o Cebolinha tem cabelo, os personagens não andam descalços e demais características típicas de um gibi são trocadas por algo mais palpável, por outro, soluções um tanto quanto mágicas não são ignoradas. O curioso é que, mesmo com essas peculiaridades, o filme ainda consegue agregar humor ao demonstrar autoconsciência de sua condição de adaptação, brincando diversas vezes com essa diferenciação entre o cânone e a adaptação.
Rezende escolhe buscar um meio termo entre um mundo totalmente entregue à fantasia e um tom realista
Há um constante flerte com o fantástico, com o onírico. Isso se dá desde a construção visual até a forma como a história se desenvolve e é resolvida. Planos detalhe e close-ups não são desperdiçados e são algumas das principais escolhas visuais que permitem que olhares, sorrisos e demais minúcias recebam o devido destaque e, com isso, conquistem o afeto do público. A câmera de Rezende não só está sempre na altura do olhar das crianças como muitas vezes está abaixo dos meninos ou entre eles, como se o objetivo fosse fazer um estudo desse momento de autodescoberta inerente à juventude.
As escolhas de figurino e fotografia sustentam esse onirismo narrativo. Muitas cores fortes e luzes douradas conferem uma estética digna de uma aventura imaginária para a jornada dos quatro protagonistas, que também corroboram essas escolhas graças às atuações extremamente expressivas do quarteto protagonista. O interessante é que, pelo fato de o filme adotar esse olhar fantástico mas apegado a um fiapo de realismo, quando acontecimentos estranhos surgem – como o fato de quatro crianças irem atrás de um criminoso em uma floresta –, acaba sobrando pouco espaço para questionarmos essas escolhas dramáticas, já que o recorte é sempre feito da perspectiva infantil, que vê tais feitos como algo aventuresco.
A narrativa onírica é sustentada por boas escolhas de figurino e fotografia
Por trás dessa estética tão vívida, o roteiro trabalha apenas o básico. Estão bem pontuados os momentos de desafio que marcam as transformações dos personagens e os esperados pontos de virada da trama, bem como há os coadjuvantes excessivos que apenas acrescentam alguma coisinha aqui e ali. Não chega, porém, a interferir no resultado final, pois a ideia de Rezende para o filme parece ser muito mais evocar a nostalgia ao filmar, pela primeira vez em live-action, diálogos e imagens que marcaram a infância de tantas pessoas.
O que dá esse toque mágico a “Turma da Mônica: Laços” é a forma como os personagens lidam com esse universo. Mesmo que crie um mundo que mescla um visual onírico com uma busca pelo realismo, os quatro personagens ainda são capazes de transcender essas limitações. O coelhinho da Mônica, Sansão, por exemplo, continua sendo um instrumento de poder tão poderoso quanto o Mjolnir de um Thor, mesmo que para isso seu poder precise ser sugerido no extra-plano – não a vemos utilizar sua “arma”, mas vemos seu impacto –, o que mantém o poder da imaginação das crianças acima do realismo narrativo. É assim, buscando sempre trazer o fantástico como algo inerente ao imaginário infantil, que “Turma da Mônica: Laços” consegue dar vida a uma saga que há tanto esperava para ver a luz do projetor.