- Cultura 2.ago.2019
“Hobbs & Shaw” diverte como poucos filmes de 2019
Derivado de “Velozes e Furiosos” leva abstração da realidade da série a novos patamares
“Velozes e Furiosos” deve ser a série cinematográfica que mais passou por mudanças nos últimos anos. O primeiro capítulo, dirigido por Rob Cohen e lançado em 2001, abordava uma investigação policial no submundo das corridas de rua dos Estados Unidos. Após o mal recebido terceiro filme, “Velozes e Furiosos: Desafio em Tóquio”, longa-metragem 2006 que apresentou novos personagens e deslocou a trama para o Japão, a franquia passou por uma grande reformulação.
“Velozes e Furiosos 4” trouxe bastante novidade para a saga, mesmo que resgatando os personagens “clássicos” apresentados no primeiro filme. Nas mãos de Justin Lin, o filme fugiu bastante do pano de fundo das corridas de rua e se tornou um verdadeiro blockbuster de assalto, com missões mirabolantes nas quais os personagens devem invadir lugares super protegidos, resgatar personagens presos, e por aí vai.
Com o sucesso da nova fórmula, a série continuou com mais quatro filmes. Desde então, não houve grandes novidades no formato, mas um elemento se destaca entre eles: o total e crescente desprezo pelo realismo. Em um período no qual boa parte dos blockbusters de ação parecem presos a um realismo – vide casos como a trilogia “Bourne” e os “Batman” de Christopher Nolan –, a franquia dos pilotos super habilidosos se tornou cada vez mais mentirosa, e, assim, conquistou cada vez mais público. Chegamos ao ponto de hoje existir realmente a possibilidade de termos um filme “Velozes e Furiosos” ambientado no espaço (!).
Eis que chegamos, então, ao primeiro spin-off da série. “Velozes e Furiosos: Hobbs & Shaw” foca em dois coadjuvantes muito queridos pelo público, que surgiram justamente após a transformação trazida por Justin Lin. Os carismáticos Luke Hobbs (Dwayne Johnson) e Deckard Shaw (Jason Statham) precisam se unir para salvar o mundo da possibilidade de um mega-vírus destruir nossa civilização. Partindo dessa premissa extremamente simples e clichê, o diretor David Leitch (de “Atômica“ e “Deadpool 2“) faz uma verdadeira paródia do gênero – que atualmente é bastante influenciado pela própria saga “Velozes”, vale dizer – explorando principalmente o humor da dupla protagonista e as características do atual cinema de ação, chegando até mesmo à desconstrução do próprio modelo estético de seu filme.
Como fez em “Atômica” e, ao lado de Chad Stahelski, no primeiro “John Wick”, Leitch brinca bastante com as cores e com o humor físico de seus personagens. O fato de ter em mãos dois astros do cinema de ação tão diferentes e já apresentados na franquia é um facilitador importante para “Hobbs & Shaw”. O curioso, porém, é que Leitch não só trata seu filme como uma paródia, como uma piada, como também expõe isso antes mesmo de projetar os créditos iniciais. Antes sequer de começar o filme, há uma espécie de “trailer fake” apresentando os dois personagens e suas características – lembrando o que Ben Stiller fez no divertidíssimo “Trovão Tropical”. Mais do que uma piada, a escolha é um dispositivo para permitir que o espectador já comece sua sessão desprovido de qualquer apego à realidade.
Se afirmei que, aos poucos, a saga “Velozes e Furiosos” abraçava o absurdo sem nenhum pudor, “Hobbs & Shaw” eleva isso a um novo nível por meio de suas auto-paródias. O humor existe em diversas formas e está lá sempre não só para brincar com a realidade diegética da obra, como também para expor a própria estrutura narrativa do filme. Por um lado, há um vilão super poderoso que se apresenta como “vilão” ou o “Superman negro”; por outro, há um agente da CIA que parece ser menos inteligente do que a filha de nove anos do protagonista, e, em seus diálogos, expõe como sua própria metodologia é pouco inteligente para quem trabalha em um órgão de espionagem internacional.
O humor está lá não só para brincar com a realidade diegética da obra como para expor a estrutura narrativa do filme
O primeiro terço de “Hobbs & Shaw” é de longe a parte mais “redonda” da obra, em que o filme aposta na comédia mais simples, com muitos diálogos “engraçadinhos”, sem muitas dramatizações nem propostas subversivas em sua parte estética. Esse trecho aproveita ao máximo a dinâmica conflituosa entre a dupla protagonista, e tem um humor acertado não só por um roteiro que, como dito, expõe o próprio esqueleto da narrativa, como também pelas abordagens caricatas e simplistas adotadas por Johnson e Statham. Aqui, vale ressaltar também o trabalho de luzes do diretor de fotografia Jonathan Sela (que trabalhou com Leitch em todos os seus trabalhos recentes). Sela cria, em muitas cenas, uma divisão que dá a Hobbs & Shaw uma estética típica de páginas de quadrinhos. As cores são utilizadas, em um primeiro momento, para diferenciar Hobbs e Shaw (vermelho x azul é um embate presente já na introdução da dupla), mas posteriormente, as luzes coloridas acabam servindo também para destacar personagens no plano: heróis e vilões, em dado momento, são iluminados em laranja, enquanto coadjuvantes ocupam a parte de trás do enquadramento com uma luz azul.
Essa demarcação do protagonismo e do posto de coadjuvante de alguns personagens contribui bastante não só para reiterar quem de fato são as figuras dominantes da mise-en-scene, mas também para fortalecer o tom cartunesco que abrange toda a narrativa. “Hobbs & Shaw” trabalha sempre em cima dos exageros, das extravagâncias, e consegue, por rejeitar uma dramatização mais séria ou alguma intelectualização sobre a trama, manter o filme sempre mais próximo da comédia.
É bastante peculiar como, aos poucos, Leitch parece se descolar completamente não só das bases dramáticas do filme, como também do realismo mínimo que estabelecia as regras do próprio longa-metragem. Mesmo que seja um filme deliberadamente “mentiroso”, “Hobbs & Shaw” trazia uma lógica interna, a necessária verossimilhança que faz com que toda obra funcione dentro das próprias ideias. Até isso, porém, é posto de lado na segunda metade da obra. Ou melhor, posto de lado, não, mas subvertido.
O primeiro terço de “Hobbs & Shaw” é de longe a parte mais “redonda”, pois é onde o filme aposta na comédia mais simples e direta
“Hobbs & Shaw” possui uma estrutura um tanto quanto peculiar. Apesar de ter seu clímax com 90 minutos de filme, após o fim dessa cena ainda restam mais quarenta minutos de metragem. O “quarto ato”, então, chega quase como um epílogo (mas não para a história, e sim para o modelo estético do filme). A própria mise-en-scene é desconstruída em sequências que não respeitam a lógica espacial do cinema – a “regra” dos 180º, por exemplo, é quebrada sem o menor receio, bem como personagens têm suas posições nos cenários alteradas a todo momento – e nem mesmo o tempo. Há uma cena, por exemplo, que traz um grande combate noturno, e que, com uma transição trazida por um simples corte, já se torna uma cena diurna sem a menor explicação.
Todo esse trecho final é tratado como uma apoteose de cenas desconexas e exageradas que possuem como propósito o impacto visual mais instintivo e direto possível. Ao fim, o grande elemento “bomba” que faz o clímax existir tem sua importância reduzida, enquanto Leitch põe de lado a missão principal e utiliza o slow-motion para dar peso aos socos trocados por Hobbs e Shaw e o vilão Brixton. Explosões, porradaria e carros velozes surgem como as únicas coisas que importam em um filme que se desfaz de qualquer lógica formal, justamente para conquistar pelos elementos da ação que são tão comuns ao gênero.
Capaz não só de trazer experimentos cinematográficos interessantes quando abandona convenções da construção fílmica para entreter seu espectador, como também de divertir quando aposta em uma comédia simples baseada na mera troca de diálogos, “Hobbs & Shaw” merece muitos elogios. Tão divertido quanto imperfeito, o filme consegue ser, em sua maior parte, uma bela referência a praticamente todos os grandes blockbusters de ação da década. Vemos ali referências visuais e estruturais a “Mad Max: Estrada da Fúria“, “Missão Impossível: Efeito Fallout“ e até mesmo aos longas anteriores do diretor.
São referências que nos permitem enxergar “Hobbs & Shaw” como algo além do spin-off, mas como uma verdadeira documentação do cinema de ação contemporâneo, ao passo que Leitch ainda encontra tempo para de certa forma propor uma desconstrução da própria lógica de espaço e tempo do filme. Assim como Paul W. S. Anderson fez com a saga “Resident Evil”, Leitch tenta, com “Hobbs & Shaw”, nos entreter com a mais pura simplicidade possível.