- Cultura 5.mar.2020
Narrativa desencantada de “Dois Irmãos” esconde belo filme de luto e amor fraterno
Animação tira inspiração do RPG apenas para fazer piada com sua premissa fantástica, mas trata com delicadeza temas maduros
É verdade que dizer que a Pixar é um estúdio habituado a criar mundos deslumbrantes em seus filmes é um exagero (tão grande, aliás, quanto a presunção da própria afirmação em tomar a empresa como entidade), mas esta conclusão talvez se torne recorrente entre os espectadores durante as sessões de “Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica”. Não como forma de elogio, vale acrescentar: dentre todos os 22 longa-metragens lançados pela companhia, o filme dirigido por Dan Scanlon é um dos que menos se interessa de maneira imediata pelos arredores do cenário fantástico tecido de forma milimétrica pelos animadores, chegando ao limite de tocar de forma quase burocrática a ideia inicial de uma fantasia medieval que seguiu o exemplo da realidade e se acomodou aos prazeres da tecnologia.
Mas ainda que o pouco destaque dado aos arredores das cenas deva gerar alguns atritos com o público nestas primeiras semanas, esta constatação produz alguns desdobramentos inesperados no filme, relacionados diretamente a esta atribuição automática como “filme da Pixar” que se dá de sua concepção à distribuição. Não é como se “Dois Irmãos” fosse lutar contra a própria noção de existência (até porque ele não deixa de ser um produto domesticado neste âmbito), mas sua configuração escapa em alguns momentos da dinâmica confortável que se estabeleceu dentro da produção do estúdio, seja nos enfoques dramáticos escolhidos ou mesmo da influência maior na história do RPG, um formato semi-industrial de imaginação e completamente distinto da origem “pura” e “livre” do estilo de criação da Pixar.
A inspiração nos jogos de interpretação é uma constante na narrativa do longa, que se organiza em torno da “jornada fantástica” do título brasileiro e é protagonizada por Ian (Tom Holland) e Barley Lightfoot (Chris Pratt). Irmãos órfãos de pai desde a infância, os dois ganham da mãe (Julia Louis-Dreyfus) um cajado mágico no aniversário da maturidade do primeiro com instruções para um feitiço capaz de invocar o espírito da falecida figura paterna por um dia. As coisas dão errado e, com apenas a metade inferior conjugada, os dois partem numa missão para encontrar a pedra capaz de dar uma segunda chance a eles de conviver com o pai uma última vez.
O rompimento de expectativas entre filme e o “branding” do estúdio acontece logo nesta estruturação da trama. “Dois Irmãos” não hesita em confundir a perspectiva do público com a dos protagonistas para permitir a aproximação das duas partes, mas sua aplicação é mais intrusiva do que gostaria: em nome da temática do resgaste do encanto, se elimina da narrativa qualquer possibilidade de deslumbre sob o conceito da fantasia conformada com a tecnologia, incluindo a do público com a estética daquele cotidiano. A animação até oferece a comédia de desarme para preencher o vazio, mas esta opção apenas alimenta a contradição em voga – além de alimentar a comparação com os trabalhos da DreamWorks, um estúdio aí sim habituado a trabalhar de forma mais “sóbria” o drama e o humor.
A trama até oferece justificativas suficientes para este procedimento – além da temática do resgate do encanto, a própria ideia de RPG implica na velha noção de que todo jogador do gênero está interessado apenas na missão, dado que o cenário sempre é o mesmo – mas a sensação de abandono não deixa de repercutir em alguns momentos, e não sem razão. Scanlon no fundo repete em “Dois Irmãos” o procedimento de “Universidade Monstros”, seu outro projeto na Pixar e que também usava da piada como forma de navegar pela história anterior dos personagens, mas se lá havia uma base que sustentasse esta operação (o público já estava familiarizado com aquele universo e suas dinâmicas), aqui tudo é novo aos olhos do espectador mas nunca tocado, às vezes até burocratizado no esforço de concentrar atenções na trajetória dos protagonistas. E como se conta uma história sobre deslumbre e magia em caráter mais explícito, esta decisão configura um corpo para lá de estranho à obra.
“Dois Irmãos” não hesita em confundir a perspectiva do público com a dos protagonistas, mas sua aplicação é mais intrusiva do que gostaria
Toda a frustração recorrente com os arredores, porém, não diminui do filme a potência do arco dramático percorrido por seus protagonistas, que aí sim mantém um “padrão” do estúdio por tema maduros e sofisticados mesmo dentro dos conformes da animação infantil. A trama escrita pelo diretor e os roteiristas Jason Headley e Keith Bunin pode até sugerir nas piadas sobre cotidiano e criaturas mitológicas domesticadas à rotina (o que inclui toda a parte da quimera dublada por Octavia Spencer) a busca por uma renovação de encantamento, mas o que se tira da premissa em relação aos irmãos do título é uma questão mais próxima do sentimental, da relação com a figura paterna ausente e o peso do passado no presente.
Embora não sejam brigados de fato, a jornada pelo feitiço desde o início tem significados distintos para Ian e Barley, e suas respectivas formações e perfis (o caráter tímido do primeiro e a pose rebelde do segundo) estão relacionadas à saudade que sentem em relação ao pai. Esta temática de trauma se manifesta nas bordas, mas aos poucos ruma em direção ao centro dos acontecimentos conforme o irmão mais novo passa a deixar o ressentimento de lado e conhecer melhor o mais velho, uma condição que o filme usa para chegar ao tema maior de amor fraterno no contexto do luto.
O que se tira da premissa em relação aos irmãos do título é uma questão mais próxima do sentimental
A Pixar já em muitas outras ocasiões produziu filmes sobre morte e a superação pessoal em um cenário de dor (nesta hora vem à mente longas como “Viva”, “Divertida Mente” e até “Toy Story 4”), mas o que distingue “Dois Irmãos” de seus antecessores é a relação fraternal e como esta é usada como base para a identificação e reconhecimento do outro dentro desta discussão. O clímax do longa, uma grande luta para derrotar um mal antigo qualquer, acaba se tornando muito mais interessante de se assistir pelos sacrifícios mostrados em prol da reconciliação com o próximo, um processamento que escapa da rotina habitual do estúdio em proporcionar atos de caridade para alcançar a completude pessoal.
Por mais que se persiga a aventura do RPG, é em cima da fábula que o longa no fim estrutura sua história, uma cuja moral está explícita no título original da produção. “Onward” em inglês é “adiante”, um termo que resume bem a busca subjetiva dos protagonistas por uma reconciliação que não está no passado com os mortos, mas no presente com os vivos.