- Cultura 16.abr.2020
Entre o homem e seus feitos, “Sergio” prefere o diplomata
Cinebiografia de Sérgio Vieira de Mello busca destacar figura humana do alto comissário da ONU, mas se perde no meio do caminho em história de idas e vindas
Em tempos de threads, lacrações e cancelamentos no mundo virtual, a busca por perfis despidos de erros faz soar como verdade universal a afirmação de que certos comportamentos e ações são capazes de definir – ou melhor, resumir – uma pessoa em sua essência. Mas mesmo que esta alegação seja falsa para tal ambiente (o ser humano é mais complexo, afinal), ela cai como uma luva para um filme como “Sergio”, até porque seu misto de boas intenções e reverencialismo pode ser literalmente resumido logo no ponto de partida da narrativa.
“Suponho que este vídeo seja para inspirar, certo?” enuncia logo nos créditos iniciais e em off o biografado, o falecido diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello e que desde este momento já é revivido no longa por Wagner Moura. A fala é inserida sem maior cerimônia na produção comandada por Greg Barker e, se por um lado reforça a frontalidade inerente de um projeto comandado por um veterano documentarista, também já abre o jogo ao espectador sobre o filme. Você está diante da cinebiografia de um diplomata, parece verbalizar o diretor neste ato, então honremos sua memória.
A parte da questão de busca por inspiração e seu contexto em um mundo à beira do caos, há um exercício de humanização bastante nítido nesta “entrega” de jogo de Barker e que gira em torno de uma figura que tende de fato à canonização. Com 34 anos de carreira, Sérgio se tornou em vida um dos sinônimos dos esforços de diplomacia da ONU, e sua morte prematura no Iraque em 2003 também significou um fim para a atuação relevante da entidade no campo político. É neste ponto que atua “Sergio”, o filme: quem era o homem por trás deste nome tão emblemático, afinal?
A ambição não chega a ser a mesma dos trabalhos de Frank Capra, mas os objetivos se assemelham. Ao invés de seguir uma linha cronológica, Barker e o roteirista Craig Borten embaralham os últimos dez anos da vida de Sérgio para forçar o espectador a deixar de acompanhar a história pelo viés geopolítico e concentrar na turbulência emocional passada pelo agora personagem, que luta para balancear a corrida trajetória profissional com a intimidade da vida pessoal. Deixa-se de lado a relação da ONU com o governo Bush – canalizada na figura engravatada do Paul Bremer de Bradley Whitford – e ganha espaço o atentado no Iraque e o relacionamento com Carolina Larriera (Ana de Armas), à espera de que se engate o espectador nas movimentações finais do protagonista enquanto se repassa seu envolvimento em países como o Camboja e o Timor Leste.
Barker embaralha os últimos anos da vida de Sérgio para forçar o espectador a deixar de acompanhar a história pelo viés geopolítico
Com o presente estabelecido, o longa passa a girar em torno de Sérgio e seus movimentos. Sobram cenas de aparente frivolidade no longa, que não esconde em momento algum a pretensão de ligá-las a algumas das principais manobras do diplomata para resolver crises – em todos os sentidos. Se o protagonista decide esperar um comunicado dando uma caminhada, por exemplo, em poucos minutos ele está diante de uma habitante idosa do Timor que pode lhe fornecer a sabedoria essencial para solucionar a questão da independência do país, e depois de receber uma má notícia do trabalho ele logo em seguida encontra o amor para suprir a dor do momento.
É curioso observar nesta hora a própria falta de manejo de Barker para conduzir estas cenas, com as situações cruas sendo pesadas pelo melodrama que busca se explicitar no curso da narrativa. Para ficar no mesmo exemplo, no caso da caminhada o contexto do beijo que “encerra” a passagem é tão anômalo que ajuda a tornar a cena simultaneamente cafona e perturbadora em seus significados.
Para além do humor involuntário das situações de desconforto, fica claro desde o início como “Sergio” mostra dificuldade em fazer o arroz e feijão narrativo e permitir que o público se envolva com Sérgio enquanto personagem. A mão pesada no melodrama é o menor dos problemas dentro de uma estrutura que se embanana com o próprio método de ir e voltar no tempo enquanto equilibra fatos e dramaturgia, e a divisão do protagonista entre o trabalho e a vida ilustra um pouco deste racha. É tudo sobre mostrar como o diplomata queria uma saída para a normalidade, mas Barker também não recusa o mínimo de contexto político, em especial no Timor onde a atuação de Sérgio foi essencial para a independência do país.
A mão pesada no melodrama é o menor dos problemas em uma estrutura que se embanana com as idas e vindas no tempo
O resultado é confuso, mesmo que dentro de proposições tão simples. O longa parte querendo aproximar o diplomata de um ideal de inspiração humanizado, como se ligasse sua busca por uma aposentadoria à resolução de conflitos – todo o papo com Carolina sobre “um último trabalho” antes de voltar ao Arpoador parece apontar a isso, pelo menos – mas termina preso à contradição de usar de um resumo de feitos para definir o homem. O espectador consegue pouco acesso a Sérgio e fica mais tempo com o “Sergio” pronunciado dos estrangeiros durante os momentos críticos do filme.
Resta então a Wagner Moura ocupar este vácuo, dando contornos de humanidade onde é possível dentro de uma narrativa de interesses não mais que levianos – no choro de lamento ao ver o colega traumatizado nos escombros, nas declarações de amor a Carolina, no constrangimento ao se descobrir ignorante sobre a condição dos filhos. Entre o homem e o diplomata, “Sergio” prefere o segundo não porque os atos engrandecem a figura, mas porque esta imagem parece lhe bastar enquanto “essência”.