- Cultura 23.dez.2020
A essência do cinema da Pixar é o grande centro emocional de “Soul”
Filme de Pete Docter e Kemp Powers simplifica narrativa tradicional do estúdio em cima de uma história que é literalmente sobre aprender a viver
É no mínimo curioso que “Soul” seja lançado no mesmo ano de “Dois Irmãos”, dado que os filmes não poderiam ser mais opostos na sua relação com a Pixar. Lançado no início de 2020, a aventura inspirada em RPG de Dan Scanlon de certa forma existia enquanto uma antítese do modo de operação que se habituou a esperar do estúdio, superestimando a comédia e apelando a um formato de contação de histórias diferente (os jogos de representação) enquanto mantinha a filiação a temas adultos em narrativas juvenis.
Se “Dois Irmãos” existe como espécie de patinho feio, “Soul” em tese surge como novo e grande filho predestinado. É o novo filme de Pete Docter, um dos últimos nomes “originais” remanescentes e atual diretor criativo da Pixar, e desde a concepção tem no circuito de prestígio seu público cativo – inclusive até a pandemia era uma presença confirmada no Festival de Cannes, chegando a receber o “selo de aprovação” do evento em seu cancelamento. Não bastasse tudo isso, graças a Docter ainda é de cara “o próximo filme” do diretor de “Divertida Mente” e “Up: Altas Aventuras”, duas das grandes joias da história da empresa.
Mas enquanto o noticiário e a publicidade envolvida sugerem uma oposição entre as duas obras, num esforço que se tornou mais ou menos comum ao estúdio de hoje, seu pareamento soa mais íntimo que a conotação comercial/arte habitual de outros anos da companhia – “Carros 3” e “Viva” em 2017, “O Bom Dinossauro” e “Divertida Mente” em 2015. Essa afinidade se dá sobretudo por uma questão de desvencilhamento: se “Dois Irmãos” virava de ponta cabeça a estruturação tradicional das histórias da Pixar, “Soul” é o filme que mira sobretudo a redução essencialista das mesmas. A premissa diz tudo: depois de anos da piada do estúdio tirar emoções de toda sorte de objetos inanimados, a história da vez é situada nos limites do além-vida.
Docter tem algumas razões para promover tal exercício, a maioria delas estando ligadas aos próprios rumos recentes da empresa a qual herdou o comando em 2018. Com a demissão vexaminosa de John Lasseter, a saída gradual de veteranos como Lee Unkrich e a transição da Pixar da imagem de um espaço de criatividade para uma posição de produtora, faz sentido que o diretor e animador tenha interesse de retornar às bases e fazer um filme que sirva de referência ao que de fato é o estúdio em sua essência. A trama espiritual é um aceno nada discreto, mas desde o começo “Soul” já se mostra mais consciente dos próprios movimentos em relação a seus antecessores. Tudo bem que os filmes da Pixar adoram sintetizar ideias em seus prólogos, mas até mesmo pros padrões de Docter a produção é bem mais ritmada para apresentar o protagonista Joe (Jamie Foxx) e sua morte – da aula pra loja da mãe, daí pro teste da banda e enfim pro desfecho trágico.
Ainda sobre acenos, a construção dos mundos pré e pós vida em torno de noções bidimensionais e tridimensionais reforça o direcionamento geral da animação, mas é a relação da dupla de personagens principais com o tema maior que de novo busca dar o tom das ambições da narrativa. Joe é um professor de música que prioriza a carreira de músico sobre todo o resto de sua vida, e 22 (Tina Fey) é uma alma ainda não nascida que se recusa a viver em prol de uma existência confortável eterna no além. Unidos por uma demanda em comum, ambos confundem vocação por essência e tratam seus dias a partir desta inversão, o que pro longa é o gatilho a toda a discussão sobre o ato de viver.
Desde o começo “Soul” se mostra mais consciente dos próprios movimentos que seus antecessores
Neste quesito a formatação de “Soul” não é muito diferente da de “Divertida Mente” e “Up”, cujos relacionamento maiores da trama guiavam a narrativa em torno de assuntos delicados como luto e depressão. A diferença, porém, é que Docter aqui não apenas trabalha em tese com um tema solar (não é sobre superar dores, mas um reaprendizado) como se interessa pelo funcionamento da balança emocional que se tornou regra da Pixar. Não à toa “Soul” deve ser o filme do estúdio que menos se compromete em seguir regras do jogo narrativo, porque o ponto da direção é se guiar quase que exclusivamente à partir das emoções despertadas em cada cena, trazendo à tona o trânsito entre estrutura e toque pessoal.
Enquanto isso tira do filme seus alicerces mais básicos (quem se guia pelo gato e rato da história deve ficar bem frustrado com a resolução, por exemplo) é divertido perceber como a “experiência” de assistir a produção é das mais orgânicas. A narrativa se reorganiza a cada 20 ou 30 minutos sem nunca perder consistência, com Docter aparentemente no auge de seu timing cômico – há uma piada hilária com o New York Knicks, mas a pérola é a homenagem indireta a “Um Espírito Baixou em Mim”. A presença do roteirista Kemp Powers como co-diretor, pelo visto realizada sob a preocupação de ter pela primeira vez um negro como protagonista, parece também ajudar o filme a manter coesão no drama de um salto a outro, sem nunca se perder na autoparódia ou na abstração pura.
Docter não apenas trabalha com um tema solar como se interessa pelo funcionamento da balança emocional que é regra da Pixar
É esta guia mais solta que retoma o paralelo com “Dois Irmãos”. Apesar de “Soul” ser mesmo a produção grandiloquente e detalhista da dupla – algo que elementos como a recriação de focos de luz na iluminação das apresentações e a trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross bem denotam – Docter e Powers aqui fazem um teste de limites da fórmula do estúdio parecido com o de Scanlon ao incorporar o RPG. Tudo é feito para abrir espaço, mostrar como novas visões são possíveis dentro das velhas estruturas.
Há uma questão de corporativismo inerente a todo este esforço, mas enquanto do lado da Pixar isso é uma discussão inevitável por conta de sua relevância no conglomerado da Disney (bem como o impacto de todos os desdobramentos das séries que prepara para a Plus), do lado do público é difícil não se deixar levar pela continuidade de valores presente no filme, bem como sua própria inventividade a partir de gestos simples e humor esperto. “Soul” é uma nova declaração de princípios, afinal, e como tal sabe como se aproveitar da própria pureza.
“Soul” estreia no Disney+ no dia 25 de dezembro.