Teatral em excesso, "Uma Noite em Miami..." emociona pela força dos personagens

Teatral em excesso, “Uma Noite em Miami…” emociona pela força dos personagens

Filme de Regina King flerta com "teatro filmado", mas funciona pelo peso histórico por trás de cada um de seus protagonistas

por Matheus Fiore

Adaptar peças de teatro para o cinema é um ato desafiador: muitas vezes, ao se ater demais ao que funciona no teatro, o diretor esquece que está trabalhando em uma mídia bem diferente. O teatro tem como essência as atuações e o roteiro, e o cinema sempre é em essência a imagem e como ela é montada. Um filme oferece uma gama de possibilidades muito maior em virtude da manipulação da imagem pela câmera e pela montagem – vale dizer, bem mais importante para uma obra cinematográfica do que o roteiro.

Não é tão comum, mas também não é raro quando peças de teatro são adaptadas para o cinema, o que é exatamente o que faz Regina King em sua terceira incursão pela direção, “Uma Noite em Miami”. King filma um encontro baseado em histórias reais, mas obviamente um pouco romantizado, que reuniu quatro lendas da cultura norte-americana de diferentes searas: Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), Cassius Clay (Eli Goore), Sam Cooke (Leslie Odom Jr.) e Jim Brown (Aldis Hodge). Além de referências da política, artes e esporte, o que os quatro têm em comum é o fato de serem homens negros, justamente o principal ponto de discussão de “Uma Noite em Miami” ao longo de suas duas horas.

Regina King (à direita) conversa com Aldis Hodge no set

A proposta da diretora é ser bastante fiel à proposta da peça. Poucos cenários, uma direção bastante contida e o discurso de seus personagens falando por si. Apesar de serem quatro ícones culturais, todos possuem suas próprias ideias e elas inevitavelmente geram pequenos atritos sobre questões raciais e políticas. O que Regina King promove, portanto, é uma experiência de imersão nas mentes dos quatro e a desconstrução da figura mítica de cada um deles. Sai, por exemplo, o Malcolm X público, que talvez tenha sido o maior e mais visionário líder social da história dos Estados Unidos, e entra um sujeito com suas próprias inseguranças e tristezas.

Como contadora de histórias, a cineasta adota uma postura muito mais observadora, e faz do filme um potencializador dos ideais das figuras históricas retratadas. Para tanto, sua câmera é suave, navega entre os planos com bastante leveza, mas não diz tanto. A força do filme está sempre nos discursos, nas brigas e reconciliações, principalmente as que envolvem Malcolm X e Sam Cook. Os personagens, claro, têm muita força, tanto por suas cargas históricas quanto pelas atuações, os quais mesmo que inicialmente pareçam simples aos poucos exibem muitas nuances graças em particular a Ben-Adir e Odom Jr.

O grande mérito de King como diretora é a capacidade de, inicialmente, nos apresentar os personagens pelo que já conhecemos deles: as figuras midiáticas, os líderes sociais. Cassius Clay dá as caras pela primeira vez em um ringue de boxe para só depois trazer seu lado humano, que ficou longe dos holofotes. A grande virada é quando Malcolm X entra em cena, já que o vemos pela primeira vez na televisão, como um discursista incisivo e preciso, mas logo o próprio personagem entra no cenário com questões muito mais mundanas, como a pergunta “você já colocou nossas filhas para dormir?” que faz para sua esposa.

A força do filme está sempre nos discursos, nas brigas e reconciliações

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A substituição da vida pública para a privada cria um universo de possibilidades cinematográficas. O filme passa a ser desenvolvido em ambientes fechados ou isolados: o terraço de um prédio, o quarto de um hotel ou um carro. É um momento decisivo na trajetória dos quatro personagens, quando todos estão em evidência e logo em perigo, já que estamos falando de ícones que nasceram e viveram em um dos países mais racistas do mundo; eles podem não só tirar suas máscaras sociais, como pensar em como fazer mais pela comunidade negra.

São nesse momentos, porém, que “Uma Noite em Miami” acaba não conseguindo mais elevar sua narrativa. Por mais que King tenha um olhar muito singelo e maduro para os personagens e as questões levantadas, talvez por ser uma diretora ainda com pouca experiência ela não consegue, em termos cinematográficos, extrair tanto desses encontros. As grandes questões e sentimentos são transformados em diálogos diretos, mas pouco refletem de maneira visual no longa. Não há um drama construído por trilha sonora, fotografia, montagem, direção e por aí vai, apenas o drama que sai da boca de um personagem para os ouvidos do outro. É puro diálogo, fazendo com que “Uma Noite em Miami” em alguns momentos pareça o que convencionou-se chamar de “teatro filmado”.

Outro grande ator que tem investido na carreira como diretor é Denzel Washington, que conseguiu até mesmo algumas indicações ao Oscar com “Um Limite Entre Nós”. O filme de Washington, inclusive, também é adaptado de uma peça de teatro, mas ele faz questão de tornar seu filme um… filme. Cada movimento de câmera, cada movimentação na blocagem dos atores, cada luz e enquadramento contribuem para a história contada pelo ator, e por mais que não seja um grande filme “Um Limite Entre Nós” possui esforços cinematográficos – algo que, infelizmente, parece faltar ao longa de King.

As grandes questões e sentimentos são transformados em diálogos diretos, mas pouco refletem de maneira visual

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Por mais que esteja longe de um mau filme, a obra de King parece estar satisfeita em simplesmente ser um amplificador para as vozes e discursos retratados. Como bandeira social, sem dúvidas, há um valor enorme em “Uma Noite em Miami”, mas estamos falando de uma obra cinematográfica, e como toda obra, este deve ser cinematográfico. Se não, qual a diferença entre simplesmente filmar uma peça de teatro e colocá-la em um serviço de streaming e repetir tudo como a peça faz e vender como filme? 

O que torna o resultado de “Uma Noite em Miami” um tanto amargo, porém, não é seu desdém pelos meios narrativos do cinema, mas a sensação de que Regina King tem um olhar muito interessante e singelo enquanto diretora. O próprio interesse da cineasta por evidenciar como a arte possui uma potência transformadora e engajadora sem igual, que vai além de discursos, é uma das coisas mais belas do filme, mas que também acabam subaproveitadas pelo foco no diálogo direto, ao invés de trabalhados na construção fílmica.

“Uma Noite em Miami” é um bom filme, mas poderia ser excelente. Regina King admira e respeita tanto os ícones retratados que parece ter receio de tirar o protagonismo deles, quando na verdade o papel do diretor é potencializar esse protagonismo com o próprio olhar.

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