- Cultura 4.fev.2021
“Malcolm e Marie” confunde ser autêntico com celebração de mediocridade
Filmado na pandemia, filme de Sam Levinson se porta como discurso vazio mesmo quando acredita contestar o cenário do cinema contemporâneo nos Estados Unidos
“Malcolm e Marie” desde os primeiros momentos é um filme marcado por uma nobreza de atos vestida de forma autoconsciente, fruto da mistura pouco discreta do cenário da pandemia com sua própria premissa. Se o longa abre os trabalhos com créditos que destacam de maneira (quase) igual todos os envolvidos na produção que se dispuseram a trabalhar no set durante uma crise mundial de saúde, a própria opção por enquadrar a chegada dos dois protagonistas do título no lar denota uma teatralidade que não esconde suas origens. Eis o palco, eis os responsáveis e eis os artistas, parece dizer a produção a seu público, sejam bem vindos ao nosso espetáculo.
É importante reconhecer de pronto a frontalidade destes gestos quando se falando do longa porque o ser frontal no fim não apenas é essencial como é o único elemento que parece importar à direção de Sam Levinson aqui. Tanto sob o viés prático quanto argumentativo, a comunicação direta é a única base discernível de todo o filme, cuja premissa de uma longa briga de casal existe para facilitar a condução dos trabalhos dos envolvidos (é um filme pensado e gestado durante o 2020 do coronavírus) e servir a narrativa do expurgo de incômodos e ressentimentos ocultos que a princípio só parecem existir mesmo em discussões do tipo. Para o longa, a dor é também um exercício de confessionário; é no conflito que surge de fato a verdade.
Uma bela teoria que não deixa de ser uma grande falácia, porém, e é desta percepção básica que “Malcolm e Marie” se põe a girar em falso logo da largada. Enquanto carrega uma convicção muito grande sobre as “verdades” que profere em direção ao público, declamando-as quase como um longo poema sobre a arte e suas provocações, o filme também não é capaz de perceber o pedestal em que se coloca nestes atos. A sinceridade, logo, se revela arrogância.
A estruturação do filme não ajuda muito. Levinson organiza todo o fluxo da narrativa em torno da relação entre si e o público, sem surpresa aproveitando o viés de teatro da história para refletir nos personagens todas as questões que deseja tratar. Malcolm (John David Washington) e Marie (Zendaya), neste sentido, atuam como prolongamentos do roteirista e diretor, cujo interesse remonta a diferentes discussões sobre autoria e autenticidade que no fundo se relacionam a uma posição de ego ferido.
Isso se reflete na história a partir do motivo da briga do casal. De volta ao lar alugado da premiere do novo filme de Malcolm, Marie se ressente do fato de que o namorado não a incluiu nos agradecimentos durante o evento, até porque ao seu ver o projeto teria sido inspirado nela – e não ajuda que a obra estaria prestes a ser percebida como uma obra-prima pela imprensa. Daí em diante o roteiro escalona para uma série de enfrentamentos dos dois, mas em nenhum momento as coisas parecem sair do eixo narrativo básico, ou seja, do desconforto de Marie em ver sua história contada e vivida por outros e do desgaste de Malcolm com o cenário e a própria amante.
Junto do próprio caráter alienígena da relação (em alguns momentos é gritante a sensação de que os protagonistas nunca se falaram), a ausência de ramificações nas discussões é o maior sinal que o filme dá de seus temas se limitarem a anseios individuais de seu realizador com a própria imagem. Não deixa de ser por si só algo cômico, ainda mais dado a forma como Levinson ao longo da história aproveita o personagem de Malcolm para apontar constantemente as restrições da crítica de cinema a discussões identitárias, incapaz de fazer algo a partir desta constatação que não passe por ressentimento muito particular e improdutivo. E para além do ridículo de se assistir o sequestro despropositado de questionamentos sobre o cinema de artistas negros, talvez seja adequado mesmo que a produção tenha ganhado aura de picuinha na crítica norte-americana ao se identificar a quem se refere as ofensas do longa à tal “crítica do L.A. Times”.
Os interesses do diretor remontam a diferentes discussões sobre autoria e autenticidade que no fundo se relacionam a um ego ferido
Mas a questão é que “Malcolm e Marie” não se salvaria nem se pudesse se pautar em torno do jogo de ofensas pessoais ou do reconhecimento das limitações de seu exercício e visão de mundo – este último um território muito bem sucedido para “Birdman”, em tese uma besteira tão egocêntrica quanto. As seguidas brigas do longa nunca se conectam e caem em ponto morto a cada fim de monólogo, presas demais a inseguranças pessoais de seu diretor para caminhar sozinhas, e o tema da autenticidade do registro de Marie no filme de Malcolm parece receoso demais para assumir plenamente a perspectiva da autoria que de fato guia todas as atenções de Levinson com o projeto. Os dois protagonistas são meros vasilhames, cabendo a Washington e Zendaya a desconfortável tarefa de preencher o vazio com o que é possível – a atriz se sai melhor, talvez pela experiência de trabalho com o cineasta que carrega desde “Euphoria”, mas suas contribuições ficam nos detalhes.
A direção perdida de Levinson inviabiliza a narrativa para além da consumação do reacionarismo, porém, reduzindo até mesmo a fotografia em preto e branco do húngaro Marcell Rév ao trabalho de longos planos e tomadas distantes que ressaltam de maneira subjetiva o desafio de se filmar durante a pandemia. Não há cena que exemplifica melhor tal incompetência disfarçada de exercício prático que o longo travelling do início, o qual situa Malcolm dançando perante a impassividade de Marie: a câmera se desloca de um lado pro outro de fora da casa e registra os personagens sem qualquer observação a mais, trancafiada na proposição de arapuca estética o qual facilita o andamento da trama diante das limitações impostas. Até se poderia comparar com os zooms de Hong Sang-soo, mas talvez seja covardia demais pedir do filme que se equipare a algo mais complexo.
Cabe a Washington e Zendaya a desconfortável tarefa de preencher o vazio com o que é possível
A sucessão de planos “poéticos” isolados da reta final sugere, porém, que o arcabouço da estética seja mesmo a única arma de “Malcolm e Marie”, pois sem ele o filme não tem para onde ir. Os esforços de divulgação do longa para a temporada de premiações buscaram a todo instante suscitar no público e na crítica comparações imediatas a outros nomes renomados – incluindo Mike Nichols e John Cassavetes, referências mais rápidas por conta da diluição de seus cinemas a palcos de grandes performances – mas no fim a pequenice de atos da direção de Levinson torna impraticável qualquer ato de identificação. Não porque o cineasta berra a todo instante da produção contra tais registros, é válido apontar, mas porque nunca há de fato uma posição tomada: o filme quer se portar como obra de contestação, mas depois de eleger seus inimigos tudo o que faz é remoer hipocrisias e se enquadrar nos moldes tradicionais, seja este o teatro e a tentativa de emular atuações que ocupem todos espaços, seja a adequação prática à pandemia e a demonstração de possibilidades.
É fato que Hollywood já há alguns anos parece existir numa frágil linha tênue graças ao esvaziamento do que é visto como original e o reforço do triunfo do que já é estabelecido, dominado por concepções de mercado em marcas e franquias. “Malcolm e Marie” parece querer servir de resposta combativa a este movimento, propondo-se como bastião da arte a serviço do cinema, mas seus efeitos são meras adesões a moldes domesticados dentro deste cenário. É mais uma grande celebração complacente de mediocridade, portanto.
“Malcolm e Marie” estreia nesta sexta, 5 de fevereiro, na Netflix.