“Um ato de equilíbrio”: como Leigh Janiak transformou 51 livros de “Rua do Medo” em uma trilogia de filmes
Diretora comenta ao B9 como os filmes que estreiam este mês na Netflix renovam espírito da série noventista de R.L. Stine - e a importância de ter uma mulher negra e LGBTQIA+ como protagonista
Mesmo com tantas sequências, remakes e reinícios simbólicos rolando em Hollywood nos dias de hoje, chama muito a atenção o fato da Netflix ter programado o lançamento de uma trilogia inteira de filmes de terror em seu catálogo para o mês de julho. Com uma história de 2 horas de duração estreando no serviço a cada semana a partir desta sexta (2), “Rua do Medo” ganhou essa confiança antecipada do estúdio sobretudo pela origem de seu material, a prestigiada e homônima série de livros escritos desde o final dos anos 80 por R.L. Stine, mesmo autor de “Goosebumps”.
As duas “franquias” tem lá suas semelhanças por conta do gênero e do caráter antológico, mas possuem objetivos diferentes. Enquanto o “primo” mais jovem e mais famoso é voltado ao público infantil e se concentra em ameaças sobrenaturais por uma ótica bem humorada, “Rua do Medo” é escrito para adolescentes com um pé no chão e a maior liberdade que lhe tem direito – em especial na parte da violência. Personagens variam de livro a livro, mas todos vivem na cidade de Shadyside, um local amaldiçoado a toda sorte de desgraça – de brutais assassinatos a fantasmas vingativos – a ser explorada em cada uma de suas páginas.
Com tantas histórias à disposição (além dos derivados, a série original conta com 51 capítulos) e a recorrência da “rua do medo” do título, faz sentido que a Netflix tenha aproveitado a compra dos direitos da adaptação em 2020 para agremiar os 3 filmes como uma grande atração única a ser maratonada ao longo do mês, seguindo o molde das típicas séries originais da plataforma. Mas ainda que a trilogia tenha uma trama maior que percorra todas as suas seis horas de duração, sua estruturação busca isolar os capítulos em produções próprias em épocas distintas. Os títulos denotam esse ponto: hoje estreia “1994”, na próxima semana “1978” e no fim do mês é a vez de “1666”, todos ambientados em Shadyside e uma nova cidade, a bem sucedida Sunnyvale.
Para Leigh Janiak, este esforço de manter os filmes isolados e também engajar o público a retornar para as sequências foi central à produção desde o início. “O desafio era acertar este equilíbrio entre tornar satisfatória a experiência de se assistir apenas o primeiro filme, mas ao mesmo tempo deixar o público investido o suficiente para ir atrás do segundo filme” diz a diretora, que não hesita em definir a trilogia como um grande “ato de equilíbrio” entre a grande trama e os contos localizados.
O investimento da cineasta com “Rua do Medo” foi alto. Fã dos livros na adolescência,Janiak está no projeto desde 2017 como diretora e co-roteirista dos três capítulos, que de alguma forma precisavam trazer à tona o espírito antológico dos livros enquanto dentro de uma estrutura concisa de cinema. “Era uma das coisas que tivemos que lidar desde o começo e enquanto entendendo o que fazer” diz durante uma mesa-redonda virtual com o B9, onde também comenta que a resolução foi ser fiel à ideia de que em Shadyside acontece tudo de ruim que é possível de acontecer; “A gente estabeleceu isso como espécie de mitologia unificada, uma que podíamos expandir ao longo dos três filmes”.
Daí em diante, ficou bem mais fácil isolar essas histórias e contá-las como filmes: “Nós estamos contando esta história de trauma geracional e podridão sistêmica representada em cada um dos assassinos, mas cada filme é uma instalação em si mesma. E eles meio que se equilibram sozinhos ao introduzir um novo mundo, sentimento e tipo de tensão entre os personagens” relembra.
O que está em jogo
Ainda segundo a diretora, a escolha dos períodos retratados também emula diferentes momentos icônicos do horror norte-americano, e cada filme carrega um grupo de referências bastante distinto. Se o primeiro puxa muito de sucessos noventistas como “Pânico” e “Eu Sei O Que Vocês Fizeram no Verão Passado”, a sequência se concentra em slashers do porte de “O Massacre da Serra Elétrica”, “Halloween” e “Sexta-Feira 13″, enquanto o desfecho tira inspiração de “A Vila”, “As Bruxas de Salem” e… “O Novo Mundo”, de Terrence Malick. “Ele não é exatamente um filme de terror, mas foi perfeito para expressar o sentimento imediato que queria de estar com aqueles personagens, suas relações e meio que o horror dos colonos virem e destruírem tudo” brinca ao comentar a inclusão.
Apesar da diversão com a contextualização de cada um dos capítulos – e desafio, dado que as filmagens de “1666” foram feitas no meio do verão quente do estado da Geórgia – a diretora tem mais interesse nas possibilidades de representação dentro da história. “Nós tivemos essa chance de contar um novo tipo de história com novos tipos de protagonistas que normalmente não vivem muito tempo nesses filmes, e isso pra mim é a parte mais excitante desta trilogia” ressalta Janiak, que reforça como seu “Rua do Medo” é também um filme sobre excluídos: “Eu espero que as pessoas assistam e percebam que podemos contar mais destas histórias. Nós não precisamos contar a mesma trama de novo e de novo, nós podemos ter uma mulher negra e queer como protagonista”.
Parte desse trabalho naturalmente passa pela adaptação dos livros, escritos por Stine nos anos 90. “O mundo era diferente então, a forma como essas histórias eram criadas era diferente” comenta ela; “Como se manter verdadeiro ao espírito do que ele estava fazendo na época, manter tudo que está acontecendo divertido e insano e aí tornar o material mais atual… nós estamos contando uma versão diferente dessas histórias, por assim dizer”.
Em meio a todo o discurso espirituoso, Janiak também reconhece o interesse comercial da Netflix e da Chernin Entertainment (produtora responsável pelos três filmes) em expandir a adaptação para mais sequências. “A parte mais legal de ‘Rua do Medo’ é que nós meio que estabelecemos a base para uma espécie de universo Marvel de terror, onde podemos ter filmes isolados e mostrar que o mal ainda existe em Shadyside” brinca a diretora, que apesar de acreditar nas “diferentes possibilidades” de continuar a história se mostra contente em focar nestes 3 primeiros capítulos da franquia. “Eu amo horror e obviamente sempre vou fazer filmes de terror, mas pra mim é sobre achar a história certa e aí pensar qual gênero faz mais sentido pra ela”.
Como criar personagens… para depois assassiná-los
O comprometimento de Janiak com os personagens transparece na conversa com os jornalistas do começo ao fim, mas muito do sucesso desta empreitada se deve a dois passos fundamentais. O primeiro sem dúvida é a escolha dos atores e atrizes, e neste ponto nada como ter alguém como Carmen Cuba – responsável pela composição de elencos de “Stranger Things”, “The Knick” e “Perdido em Marte” – de diretora de casting.
“Ela é muito boa para encontrar pessoas que normalmente não estariam no topo da pilha” comenta no encontro; “ela é ótima para encontrar jovens talentos que meio que florescem em cena, e para cada personagem nós procuramos alguém que fosse completamente desconhecido”. Segundo Janiak, essas escolhas se refletem nos três filmes, até porque do grande elenco composto apenas os nomes de Sadie Sink e Maya Hawke se destacam de conhecidos pelo público – e a última está ali claramente para prestar homenagem a “Pânico”. O resultado é descrito por ela mesma como uma “sopa de grandes atores”, uma que demorou a ser resolvida, mas com toda sorte de “acidentes felizes” criou um tempero especial ao projeto.
Já o segundo passo é sem dúvida o viés inesperado de certas manobras da história, que não hesita em matar personagens em momentos inesperados para inverter por completo a perspectiva do público sobre os rumos da história. Tudo pertence à proposta de horror seguido pela cineasta, claro, mas é um que também envolve criar um laço entre o espectador e aqueles jovens: “Parte deste objetivo é que, em meio à diversão destes filmes, a gente lembra que há um custo humano real na história, que há um risco aqui. Há pessoas que você se importa que são assassinadas para meio que manter o público motivado junto de Dina e seus amigos para acabar com estes ciclos” comenta; “Nós precisamos que pessoas que meio que amamos não consigam chegar até o fim para dar o peso necessário que essa trilogia merece”.
Neste ponto vale ressaltar a brutalidade com a qual essas cenas são filmadas, nunca hesitando em mostrar sangue e tripas de frente para reforçar os perigos em cada esquina da trama mesmo dentro de um filme voltado a adolescentes. “Para mim, essa trilogia sempre precisou ser para maiores de idade, e parte disso é porque eu acho que o gênero slasher precisa ter esses momentos loucos, eles precisam ter sangue e mortes insanas” afirma a diretora.
A parte mais interessante disso, aos olhos de Janiak, é que de certa forma essa metodologia acaba por emular a série de livros de R.L. Stine, especialmente em seu início. “Lembrando dos três primeiros livros, eles nem são tão violentos, mas na minha memória de leitura enquanto adolescente eles soavam ousados e subversivos” brinca a cineasta; “Naquela época, para mim fez todo o sentido que aquilo era algo que devia existir”.