- Cultura 7.jul.2021
Com álbum “Portas”, Marisa Monte oferece escape, leveza e um vislumbre de dias melhores
Cantora segue sem desvios na carreira, com classe e qualidade ímpar. Mas trabalho é indispensável por proporcionar um alívio em meio ao caos
Depois de 10 anos sem lançar um álbum de músicas inéditas, Marisa Monte apresenta “Portas”, disco que vem recheado de parcerias interessantes e que, a grosso modo, apenas segue a estética mantida pela cantora há 30 anos. Aos entusiastas do “inovador”, o aviso é que este não é um álbum nada inovador dentro do universo da artista e do próprio cancioneiro nacional. No entanto, o trabalho refinado e, ao mesmo tempo, de fácil consumo proposto por Marisa e seus colaboradores traz uma espécie de escape da realidade, seja da mesmice das canções mais tocadas em rádios Brasil a fora, ou do caos social no qual estamos mergulhados. “Portas” é poesia pura e de qualidade, do início ao fim, embalada por arranjos impecáveis que resgatam da brasilidade dos Novos Baianos à Bossa Nova.
Ainda que a nostalgia pareça permear todo o trabalho, o álbum se beneficia do momento no qual é lançado e acaba sendo muito mais sobre o futuro que o passado. Cada música parece feita para ser cantada no hoje, mas olhando para frente, para os dias melhores que estão por vir – sim, para Marisa, os dias serão melhores. “A Língua dos Animais”, canção criada pela cantora em parceria com Arnaldo Antunes e Dadi Carvalho é o melhor exemplo desse futuro projetado com esperança. É quase impossível ouvir o refrão que cresce em “Vou sair pra passear ao sol / Vou pisar / No capim / E depois de me banhar o sal / Leva o mar / Sobre mim” – e não se imaginar num contexto pós-pandemia aproveitando pequenos prazeres que o isolamento social nos tirou. Até mesmo “Déjá Vu”, cujo nome por si só exalta uma certa nostalgia, na verdade é uma ode inspiradora: “Vem, vamos lá / Vem viver / Vem sonhar / Pela estrada / De estrelas do mar“. Os arranjos de cordas da canção, inclusive, são de um primor a ser apreciado com atenção.
“Portas” é poesia pura, do início ao fim, embalada por arranjos impecáveis que resgatam da brasilidade dos Novos Baianos à Bossa Nova
“Portas”, faixa-título e single que já ganhou clipe, também carrega essa carga pós-apocalíptica num cenário de fazer escolhas e seguir caminhos, ainda que impossíveis de prever, mas que são melhores do que o impedimento de seguir de qualquer forma: “Não importa qual / Não é tudo igual / Mas todas dão em algum lugar”. A música, também nascida da parceria com Arnaldo e Dadi, tem uma introdução de piano que chama atenção pela semelhança com o mesmo instrumento em “All Things Must Pass”, de George Harrison. É um hit instantâneo, assim como a esperançosa “Calma”, parceria com Chico Brown e que de pronto resgata a vibe Tribalistas, com pinceladas de “tchururus” e destaque para a percussão.
Chico Brown assina, ao lado de Marisa Monte, 5 das 16 faixas do álbum, assumindo com primor o posto que era de seu pai, Carlinhos Brown, que pela primeira vez desde 1994 não aparece como parceiro em um disco da cantora. Além das já citadas “Calma” e “Déjà Vu” estão “Medo do Perigo”, a delicada “Em Qualquer Tom” e “Fazendo Cena”, que talvez seja a letra mais poética (ainda) da parceria entre Marisa e Chico, além de uma guitarra que lembra um pouco do recente álbum de St.Vincent.
Cada música parece feita para ser cantada no hoje, mas olhando para frente, para os dias melhores que estão por vir
Arnaldo Antunes, por sua vez, colabora em 3 músicas do disco, assim como Marcelo Camelo. Além da encantadora “A Língua dos Animais”, a singularidade de Arnaldo como escritor é visível em “Vagalumes”, também distinta por ser uma espécie de fado português. A peculiaridade de Marcelo Camelo também é facilmente identificável na tracklist. É muito fácil de imaginar a Bossa Nova “Espaçonaves”, faixa que Marisa Monte só interpreta e Camelo assina sozinho, como uma canção de um álbum de Camelo, talvez não tanto quanto “Sal”, que tem referências até de Los Hermanos. “Sal” também reforça a temática de natureza e momentos ao ar livre e, ainda que seja uma música romântica, mantém o olhar futurista que é a essência do disco: “Sabe não sei quem vai dizer / Como vai ser nosso destino / Como será / Como vai ser”.
De fácil identificação também é “Praia Vermelha”, cuja introdução nos traz à mente Nando Reis e Cássia Eller. De fato, é uma parceria de Marisa com Nando, que não aparecia em um álbum da cantora desde 2006. A flauta dá o tom em meio aos arranjos de violão característicos de Nando, num final doce que serve quase como encaixe para a faixa seguinte, “Totalmente Seu”, colaboração com Silva, que logo ganha mais corpo com os violinos. Há ainda um gostoso samba com Pretinho da Serrinha em “Elegante Amanhecer”, uma homenagem à Portela e que também ressalta o quanto essa mistura de inspirações e referências não afeta o trabalho em momento algum. Pelo contrário, “Portas” tem uma coesão geral, ainda que a faixa em parceria com Seu Jorge e Flor, “Pra Melhorar”, tenha um certo apelo popular que parece destoante das outras músicas. Ela traz toda essa energia de “dias melhores virão” do disco, mas de uma forma bem mais simplista que outras canções. A parceria, definitivamente, poderia ter sido bem melhor aproveitada. Ainda assim, há de se considerar que, se tratando de um álbum com 16 faixas, uma música final não ser lá essas coisas é cabível de um paninho a ser passado.
“Portas” é um álbum no qual Marisa Monte segue sem desvios na carreira, fazendo o que sempre faz, com classe e qualidade ímpar. Mas o que eleva o trabalho ao patamar de indispensável é proporcionar um escape positivo em meio à realidade na qual estamos inevitavelmente imersos. Como diz Elton John: “Grandes álbuns são aqueles para os quais você sempre volta”. No caso de “Portas”, voltar a ele é uma questão de manter a esperança e de oferecer um alívio à saúde mental. Indispensável.