Novo livro de Chico Felitti mostra como Elke Maravilha era a Mulher-Maravilha possível
Em seu terceiro livro, autor narra vida, obra, dissabores e gargalhadas de uma das maiores artistas do país de maneira encantadora
Quando tinha entre sete e oito anos, encontrei um potinho de sombra em pó verde. Verde cintilante. Estava jogado numa gaveta de maquiagens, esquecido ali pela minha avó. Não tive dúvidas e meti os dedos no pigmento, colorindo minhas pálpebras até a altura das sobrancelhas. Olhei no espelho e me espantei – nunca tinha visto meus olhos castanhos com tanta cor. Saí do banheiro orgulhosa da minha criação e chamei a atenção dos adultos da casa. “Ó o que eu fiz!”, bradei. A resposta foi um misto de constrangimento com risadas abafadas. Minha avó, que tinha pouco tato com outros seres humanos, se levantou e me levou de volta pro banheiro. “Vamos, vamos lá tirar isso. Você está a cara da Elke Maravilha!” ela me disse na hora.
E eu, desanimada, pensei comigo mesma: “mas quem é Elke Maravilha?”.
Essa é a pergunta que Chico Felitti responde no seu novo livro, “Elke: Mulher Maravilha”, publicado pela editora Todavia. O autor já é conhecido por contar histórias com um trabalho de pesquisa muito intenso e esse não é diferente, mas faz um caminho inusitado: a obra estreou, primeiro, como um áudio livro publicado com exclusividade para a plataforma de áudio Storytel, e depois de algum tempo ganhou também uma versão adaptada para as prateleiras.
E que versão.
Elke Maravilha é um ícone brasileiro que tá na cabeça de grande parte da população. Qualquer pessoa que se vista de maneira extravagante e chamativa faz lembrar da artista cheia de talentos diferentes. No livro, porém, Felitti traz à tona mais Elkes do que a memória de qualquer brasileiro poderia ter guardado.
A narrativa é costurada de maneira leve, apesar da sequência alucinante de acontecimentos. Acompanhamos desde a sua chegada ao Brasil, pequenininha, até o momento de sua morte, em 2016, e o livro já começa apresentando a maior característica da protagonista como uma narradora não-confiável da própria vida. É nesse livro que descobrimos que ela na verdade era alemã, e não russa – porque Elke criou muita ficção sobre si.
O mais interessante é que ela nem precisaria. Ao longo dos capítulos, descobre-se que a sua família, os Grünnup, estão envolvidos com a chegada das plantações de morango no Brasil. Que Elke é uma das responsáveis pela dose extra de alegria nos bastidores dos programas do Chacrinha e pela presença de cantores que não queriam sair de seus camarins. Que ela previu o sucesso da Angélica. Que foi ela que, ao acaso, juntou a trupe de dançarinos que, mais tarde, formaria o Dzi Croquettes. Elke foi uma engrenagem pouco percebida, ainda que muito vistosa. E o texto pinta o sorriso largo de Elke a cada página.
Os capítulos, divididos pelos anos de vida da artista, levam pela mão e explicam cada passo, mas sem tédio. Porque não há nada tedioso sobre ela. A presença da política na vida de Elke é algo constante. Não por levantar bandeiras ou fazer discursos elaborados e emocionados, mas fazia política a cada gesto. Fez quando desconcertou Adhemar de Barros Filho, interrompendo seu discurso a favor do golpe militar com um beijo de batom vermelho em suas bochechas, calando o homem. Fez quando levou Jorge Lafond, humorista que interpretava Vera Verão, no seu programa no SBT para falar sobre ser um homem negro e gay no Brasil. No mesmo programa, também celebrou um casamento entre dois homens.
Com essas atitudes, descobrimos também um outro detalhe da vida televisiva dela: a briga entre ela e o dono do SBT, Silvio Santos. Sua irreverência e liberdade batiam de frente com o conservadorismo caxias do patrão. Os dois nunca se deram bem – ela sempre insubordinada, liberta e autêntica demais, ele sempre querendo respeitar os “valores da família tradicional”. A conta não fechava muito bem, embora ela nunca perdesse o jogo de cintura para lidar com a situação. Sua esperteza a salvava da estupidez alheia também quando lidava com quem achava que ela não passava de uma palhaça – assim como a avó que eu citei no lá primeiro parágrafo.
No livro há também mais sobre o tempo em que ela passou detida em uma das unidades do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), após um ato de rebeldia em favor de sua amiga Zuzu Angel em 1972. Elke narra sua prisão e interrogatórios com a mesma leveza de quem narra um passeio no calçadão de Ipanema. Fala sobre ter sofrido pouquíssima violência. E tamanha tranquilidade aflige. Afinal, não há como saber, de verdade, se ela sofreu tão pouco ou se quis criar uma história que achava mais interessante.
E é com esse envolvimento que Felitti faz questão de te colocar dentro das histórias. A sensação é de que você está ali, num bar, ouvindo cada passagem entre uma cachacinha e outra. E quando, mais tarde, ele aborda o alcoolismo bastante severo de Elke, faz com que você se sinta culpado por não ter notado antes. Ela parecia tão alegre, ali, bebendo e conversando com o leitor. O laço formado, que antes era tão macio, passa a apertar e dar nó na garganta. A vida de qualquer um não é feita só de maravilhas, e a dela não foi exceção.
Entre amores intensos, picuinhas com o dono do Baú e frases deliciosas, Felitti faz o que os estilistas de Elke fizeram por toda sua vida: recebeu tecidos crus, soltos, e confeccionou uma história tão brilhante, chamativa e exuberante quanto os figurinos que Elke gostava de usar. A história faz com que nos sintamos próximos dela como um amigo ou um amante. E “Elke: Mulher Maravilha” é mais um acerto delicioso de Chico Felitti que, hoje, é um dos maiores jornalistas literários do país.