No novo "West Side Story", Steven Spielberg enfim faz seu filme de fã
Imagem: Niko Tavernise/ 20th Century Studios

No novo “West Side Story”, Steven Spielberg enfim faz seu filme de fã

Remake presta contas diretas ao filme de 1961 e é muito feliz (ainda que limitado) para traduzir sua dinâmica vibrante ao cinema contemporâneo

por Pedro Strazza

Não deixa de ser uma afirmação para lá de segura nos dias de hoje dizer que “West Side Story” é um clássico do cinema, mas ela também é capciosa no sentido de sugerir que a obra sozinha nasça com toda a pompa de predestinação que os desígnios do cânone impõem. 

Escrevo isso não para contestar o status de prestígio do musical dentro dos confins do legado da velha Hollywood, mas para atentar à posição dita “intocável” de uma produção que é feliz também por suas imperfeições. O filme de Robert Wise e do coreógrafo Jerome Robbins persevera no imaginário sempre numa condição de apesar, afinal: apesar da falta de química do casal principal interpretado por Natalie Wood e Richard Beymer (a ponto de render prêmios aos coadjuvantes no Oscar), apesar do colorismo e dos comentários raciais equivocados da história, apesar até mesmo do descompasso evidente no estilo dos dois diretores, é muito difícil assistir a produção sem se deixar afetar pelo impacto emocional de sua versão nova-iorquina de “Romeu e Julieta”, sobretudo nos momentos finais onde a tragédia se avoluma como uma força equilibrada nos próprios pés.

Me parece ser justo dessa sobrenaturalidade que Steven Spielberg parte com sua versão do musical, um remake que chega não apenas com a aura do marco de cinquenta anos da primeira adaptação como da própria relação do diretor com o material – o longa é dedicado ao pai do cineasta e ele mesmo vem recontando em entrevistas toda a relação especial que o musical da Broadway teve durante a infância. Em tempos nos quais a indústria existe cada vez mais para ressuscitar e reempacotar imagens de um passado de sucesso, o “West Side Story” de 2021 não deixa de ser mais um desses projetos que toma o original de base formada como legado, mas tal relação aqui não é unidirecional. Longe da contestação, do distanciamento e da releitura, Spielberg refaz o caminho de Wise e Robbins da sua posição de direito enquanto nome veterano da nova Hollywood, e é deste eixo de velho e novo carcomidos pelo tempo que a produção se encena.

Steven Spielberg (à frente) no set com Rita Moreno

É importante notar a disposição desses elementos pois ela sozinha já remove o diretor do modo de operação que definiu sua safra mais “nobre” de filmes na última década, onde prestou contas de forma direta com os cinemas de sua formação – de “Lincoln” com John Ford a “Ponte dos Espiões” com Frank Capra. Por ser um remake, “West Side Story” impele menos Spielberg ao revisionismo que o trabalho de recriação, com a narrativa a todo momento buscando atuar como reflexo contemporâneo da forma precisa e muito dinâmica do filme de 61.

Assim, faz algum sentido que o ângulo político da história seja atualizado aqui para um comentário superficial da gentrificação na cidade, com as ruínas dos prédios demolidos servindo mais para remover da adaptação o fundo de cena “teatral” que tanto definiu o antecessor. A localização do musical em Nova York é apenas uma desculpa para “West Side Story” trazer a um cenário urbano a tragédia shakespeariana e no remake isso segue uma verdade máxima. Mesmo com o filme abrindo com um sobrevoo da câmera sobre os destroços, essa situação atua no exercício de refazimento discreto, de priorizar o impacto emocional dos atores da trama sobre sua contextualização na região mais vulnerável.

Não que Spielberg também caia na armadilha da sobriedade para seu primeiro musical, porém, e por esse lado o filme é de fato deslumbrante como boa parte da crítica faz parecer neste primeiro momento de recepção. Muito pelo bom trabalho de Janusz Kaminski, diretor de fotografia do diretor há quase trinta anos e que aqui faz com elegância a transição dos travellings definidores do cinema do cineasta para o gênero enquanto dilui as cores fortes do original com uma sensibilidade estonteante. O resultado é potente e um momento em que a câmera enquadra de cima Ansel Egort sozinho sobre uma poça já justifica a qualidade desse exercício, mas Kaminski ainda trabalha muito bem alinhado com Justin Peck, coreógrafo do Balé de Nova York que atualiza os balés de Robbins para dentro da narrativa dinâmica e dos cenários acidentados da produção de maneira adequada aos espaços maiores habitados nas cenas.

A narrativa a todo momento busca atuar como reflexo contemporâneo da forma precisa e muito dinâmica do filme de 61

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É muito fácil se deixar levar pela fluidez dos números musicais e do drama que se encena a partir daí, mas conforme o filme avança se nota também o quanto ele atua enquanto simulacro moderno do antecessor. O novo “West Side Story” não chega a ser um vazio narrativo, mas sua condição de existência enquanto emulação não vai longe conforme os efeitos se fazem diluídos dentro da própria equação. Isso porque o esforço maior do remake mora mesmo na tarefa de tornar esta nova versão numa sobreposição da anterior, uma fantasmagoria de si mesma, e o ato mais intencional dessa prática é a presença de Rita Moreno como Valentina: no papel de “contraparte” feminina de Doc, um personagem desde sempre usado como perspectiva de fora dentro da briga dos Jets e dos Sharks, a atriz serve para projetar o filme de Wise e Robbins para dentro do musical de Spielberg aos olhos do espectador, ainda mais por realocá-la a outro papel de viúva cinquenta anos depois de interpretar Anita – e é justo desse sentimento de perda que busca-se remoer.

O roteiro de Tony Kushner nesse sentido não deixa de ser eficiente em todas as alterações da estrutura do texto da peça de Arthur Laurents, sobretudo por individualizar ainda mais o romance de Tony (Egort) e Maria (Rachel Zegler) dentro da história das gangues – o que é ótimo; se há uma tradução fiel da versão de 61 para 2021, com certeza é a dificuldade de obter alguma emoção romântica dos protagonistas. Além disso, é uma operação que se traduz como tentativa de desenrolar a ópera inerente do musical, com Tony ganhando um histórico mais presente na prisão e seus impulsos à violência melhor demarcados para justificar o assassinato de Bernardo (David Alvarez) pela morte de Riff (Mike Faist). Isso vale também para o musical, a ver pela escolha peculiar de localizar a canção “I Feel Pretty” logo após o conflito dos grupos ou a mais acertada transformação de “Cool” em um duelo cantado de paz e ódio. Ainda há as atenuações adequadas aos tempos atuais, vide a cena da tentativa do estupro de Anita (Ariana DeBose) que enfim ganha um julgamento moral sobre o verdadeiro crime em questão.

Tudo isso é interessante nos limites do remake, mas não agrega tanto à tragédia além do artifício, e este efeito resume o longa. Ausente o revisionismo, resta à direção de Spielberg apenas uma orquestração dos atos que termina um tanto desconectada dos propósitos originais, alimentada por seus gestos grandiloquentes que, apesar de continuarem muito deslumbrantes, não chegam a lugar algum dessa vez. Mesmo a encenação diferente da morte de Tony, com Chino (Josh Rivera) no campo de visão de Maria para acentuar a tragédia, não é capaz de evitar o desfecho frio deste “West Side Story”, um que assim como o próprio Chino desta versão é ao mesmo tempo muito operístico e pouco emocional para o próprio bem.

O esforço maior do remake mora na tarefa de tornar esta versão numa sobreposição da anterior, uma fantasmagoria de si mesma

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Se tudo é muito ciente e pouco sentido, do comentário político à abordagem do material, esta posição do filme não deixa de ser um ponto peculiar dentro da carreira de Spielberg, para sempre o nome fundador da Hollywood de hoje e de toda sua cultura de produções com grande alcance e domínio, até porque sugere mesmo um puxa e repuxa interno ao diretor com o material que escapa de projetos passionais como seu “As Aventuras de Tintim”. Posto dessa forma, “West Side Story” se relaciona menos com seus longas “sérios” e “maduros” para funcionar como a outra ponta de um eixo formado com “Jogador N° 1”, pois se ali era sobre como Spielberg se relacionava com o legado maldito que formou dentro da cultura de massa, aqui ele enfim realiza o movimento prescrito na premissa da adaptação do livro de Ernest Cline e faz seu filme de fã, em todas as suas limitações (de diâmetro bem amplo, claro) e prazeres imediatos.

Mais curioso que isso só mesmo como a produção se arranja neste momento em que o gênero musical volta a ganhar força em Hollywood, e aí sim talvez seja válido lamentar pelo estranho antagonismo de elementos que acontece na leva de 2021. Se projetos como “Tick, Tick… Boom!” e “Em Um Bairro de Nova York” sobram em substância e boas intenções o que não tem em forma, investidos demais no conforto do digital para fabricar narrativas artificiais incapazes de contemplar seus atos, “West Side Story” é o caso diametralmente oposto, o de um musical com ótima noção do que realiza com os vastos recursos à disposição, mas incapaz de ir muito além por sua proposta diminuta com o gênero.

“West Side Story” estreia nesta quinta-feira, 9 de dezembro, nos cinemas brasileiros.

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