- Cultura 26.jan.2022
Guillermo del Toro pesa a mão no fatalismo em “O Beco do Pesadelo”
Primeiro noir do diretor é marcado por esforço muito grande de materializar jornada destrutiva de seu protagonista, mas se asfixia na auto-análise
O noir é desses gêneros que fascinam pela fertilidade de obras embasbacantes, mas sua trajetória histórica em Hollywood é em si um ponto de interesse. Em porcas palavras, esses filmes junto dos faroestes foram da bucha de canhão barata do sistema de estúdio ao prestígio auto-adquirido a partir da descoberta e batismo pelos franceses, que viram nas histórias de crime um leque vasto de possibilidades de complexificação da estética e suas histórias. Com o encerramento desse ciclo de produções, esse filmes gradativamente se solidificaram como um estilo, um cinema de gênero nobre cujas ambições só poderiam se encaixar nos níveis mais prestigiados da indústria.
O que intriga nessas idas e vindas é que esse status do noir parte de um pressuposto chancelado posteriormente. Se os bangue-bangues mantinham uma constante em comum no retrato de uma época e imaginário muito particular dos norte-americanos, aperfeiçoados até cair no revisionismo, o noir foi pensado como gênero estilístico depois de sua produção. Os filmes vistos hoje como exemplos da categoria variam muito em origem e criação, de adaptações de livros a meras histórias policiais que lentamente se deslocaram da perspectiva dos criminosos para os policiais – até mesmo em questão de espaço, da opção deliberada de sair dos sets para filmar nas ruas. Que essa “produção” tenha sido redescoberta e entendida como “cinema noir” depois da Segunda Guerra deixa mais claro o construto, um reempacotamento que mergulha o gênero nessa condição expansiva e abstrata de hoje.
Na prática, isso torna o noir nesses raros casos de um livro de referências virtual para as novas gerações, o que por consequência significa que todo esforço de repetição seguinte a esse momento se encena como ilusão de uma ilusão. Do neonoir aos exercícios mais conservadores, dá pra dizer que todo noir realizado depois dos anos 50 é pensado de uma perspectiva e um conjunto de valores ensinado, não assimilado.
Essa é uma conclusão valiosa de se ter no cenário atual, onde Hollywood parece viver numa trincheira emocional com o passado quando se trata daquilo que enxerga como mais “valioso” enquanto gêneros como o noir e o faroeste sobrevivem nos círculos mais prestigiados apenas no exercício de rememoração, até porque a partir dela é mais fácil de se enxergar o construto artificial em movimento nesses tais projetos enobrecidos. No caso de “O Beco do Pesadelo”, filme que marca o primeiro projeto de Guillermo del Toro após sua consagração com o Oscar de Melhor Filme, ela denota com precisão as urgências que movem o cineasta, o que não deixa de ser peculiar dado que também se ensaia aqui um primeiro contato: o do diretor de horror com o noir.
O longa é ainda mais peculiar nessa equação por se tratar de uma adaptação do “O Beco das Ilusões Perdidas”, livro que por acaso já havia virado filme no ciclo do noir em 1947. Ainda que del Toro insista que sua versão descartou a antecessora de qualquer estágio criativo, é inevitável parear o filme com essa primeira tradução, o tal “O Beco das Almas Perdidas” dirigido por Edmund Goulding, até porque ambas imprimem um mesmo senso de “tradução fiel” dos escritos de William Lindsay Gresham à tela. Por mais dedicado à estética que o diretor mexicano seja, tanto no filme dos anos 40 quanto no de agora os diálogos ocupam posição central da narrativa, dando o tom de cada virada da história.
Isso se dá sobretudo pelo teor da premissa do livro de Gresham, que lida com o tema da ganância pela via dupla da psicologia e da sorte a partir da trajetória de Stanton Carlisle (Bradley Cooper), um homem misterioso que aprende no circo os truques por trás da “leitura de mentes” com uma taróloga (Toni Colette) e passa a buscar retornos cada vez mais lucrativos com a empreitada. Lançado apenas um ano depois da publicação do romance, o filme de Goulding enxergava essa jornada do protagonista dentro dos conformes cínicos do esgotamento do sonho americano, adequando a trama como um comentário da lógica capitalista daquele momento tão próximo da crise de 29. Stanton ali aumenta os riscos dos golpes empreendidos a cada novo sucesso, repetindo essa prática até que se estoure a corda e o leve a perder tudo, enfrentando as consequências representadas na imagem de seus mestres que o atormentam.
Já del Toro, vindo do horror, prefere dobrar a aposta nessa derrocada e tornar a narrativa numa grande empreitada para descobrir a real essência de Stanton, o tal “é um homem ou um monstro?” que o marketing vem destacando desde o início; sua consciência dessa manobra é tamanha que ele muda o contexto da história para depois da Segunda Guerra e deslegitima a importância de um assassinato do primeiro ato, crucial a esse efeito. Além disso, o diretor apela ao desencanto tradicional do noir como um recurso maior da produção junto da corroterista Kim Morgan, aumentando drasticamente a fatalidade imbuída nas movimentações cíclicas do personagem. Chega-se ao ponto de dar a Stanton uma história pregressa aos acontecimentos, que revela do princípio ao público sua maldade interior; o tal corpo enterrado numa casa em chamas do início é um mistério a ser descoberto não pela identidade do mesmo, mas pela prática de seus atos posteriores.
Posto isso, dá pra fazer um drinking game em torno do número de vezes que Stanton é alertado pelos mais próximos dos erros que está cometendo, pois eles se proliferam aos borbotões no curso das quase duas horas e meia de “O Beco do Pesadelo”. Tudo sacramentado no “Não faça o show de assombrações”, claro, dito pela madame Zeena de Colette pouco antes das coisas desandarem de vez.
Por ser um filme dirigido por del Toro, é natural também o maior cuidado artesanal da narrativa dentro dos rumos da história. O filme é rodeado de círculos, afinal, com os espaços e objetos apontando de novo e de novo o quanto as decisões de Stanton não escapam do seu comportamento autodestrutivo e monotemático, algo que o cineasta assimila aqui como um destino inevitável. É uma vida fadada à tragédia e a produção se encontra muito determinada a materializar gradativamente essa noção ao público.
O filme apela ao desencanto como recurso maior, aumentando drasticamente a fatalidade imbuída nos atos do personagem
Há um jogo de atração e repulsa com o protagonista muito promissor nessa lógica de simbolismos, mas a falta de um contraponto é sentida. O diretor gosta de reforçar o quanto Stanton é desses personagens que não carregam um arco e portanto não mudam ao longo da própria história, mas por mais válido que seja a manutenção deste status, o filme também não hesita em imprimir este traço a todos os aspectos possíveis da narrativa – até porque de novo, se acredita que este mecanismo acrescenta à inevitabilidade da tragédia. Mas se Stanton não muda, “O Beco do Pesadelo” também faz o mesmo, e o que é a princípio sedutor rapidamente se esgota na paralisia de movimentos, ainda por cima dentro de uma duração extensa.
Assim, pesa-se a mão no fatalismo ao ponto de romper com qualquer possibilidade de interação com o personagem maior da história, o que é cômico pois nessa hora rompe-se com o noir pela priorização do noir – e eis aí o efeito da ilusão em cima da ilusão. Se o gênero é pautado por histórias de desencanto e cinismo, o longa de del Toro se precipita a adiantar tudo isso ao espectador a todo momento em nome da auto-análise, forçando um distanciamento do público da trama sobre o objeto de observação. Se o filme se encena como um ato de asfixia, ele apenas termina asfixiado.
Nesse ponto, vale até comparar a produção com “Joias Brutas”, outro filme recente que também tinha ao centro um personagem monolítico cuja teimosia dos atos acarretava em consequências desesperadoras. Se os Safdie entendiam esse mecanismo de forma divorciada do personagem, com o Howie de Adam Sandler praticamente lutando a cada passo contra a máquina que o cerca, “O Beco do Pesadelo” insiste no fatídico a todo momento por acreditar que assim irá se aprofundar nas decisões de Stanton – uma mecânica até comum no horror. O resultado é o oposto, porém, e o personagem parece existir consciente de sua derrota em todas as ações mesmo quando sai triunfante delas.
É uma autofagia monótona, e não ajuda em nada nessa hora o tom de solenidade imposto pela narrativa. Colaborador de del Toro em “A Forma da Água” e “A Colina Escarlate”, Dan Laustnen fabrica uma fotografia que consegue ser mais panorâmica que seus dois últimos trabalhos com o diretor, adotando um perfil quase mallickiano no registro distanciado da ação por travellings e planos de grua. Essa prática diz pouco respeito ao andamento da ação e mais serve como comentário da mesma, e ainda que a intenção seja essa de fato, contribui-se pro arrasto sem grande efeito a ponto de até mesmo remover o trabalho dos atores do procedimento; tudo é frio e calculado, pouco é sentido.
Nessa hora, há de se ter pena de Bradley Cooper. Rola um esforço muito grande da parte do artista para materializar o jogo duplo constante de seu papel nos cenários assombrados criados pelo diretor, mas o reforço do artifício esvazia sua performance e não dá espaço para qualquer registro físico de sua revelação tanto ensaiada. O resto do elenco, enquanto isso, contribui pro excesso vivendo arcos que mais restringem o circuito da trama que a expandem, tornando-a em uma espécie de hard boiled dos mais indigestos. Que a psicóloga de Cate Blanchett tenha toda uma história própria para justificar seus atos junto de Stanton é dessas decisões criativas que contribuem pra sensação crescente de mais um caso de longa-metragem esmagado pelo roteiro.
É uma autofagia monótona, e não ajuda em nada o tom de solenidade imposto pela narrativa
O curioso a se notar nesse ponto é como o filme parece existir nesse compasso em atendimento direto aos anseios do livro. Que del Toro tenha buscado distância do filme de Goulding soa como um ato desconexo dentro da própria mítica construída em sua carreira – a de amante do cinema, cuidadoso com todos os departamentos – mas adequada quando se pensa no sentido da literalidade da adaptação, apesar das tantas mudanças proporcionadas pelo roteiro. O diretor dá a entender com seus movimentos que aborda o livro como outro de seus filmes de terror, mesmo no interesse primário pelo noir, até porque “O Beco das Ilusões Perdidas” mantém certo status sobrenatural nas circunstâncias de sua criação – a partir de um relato ouvido na Guerra Civil Espanhola – e do falecimento do escritor – que no último ato de sua vida escreveu que Stanton era o autor.
A questão é que o filme de 1947 também mantinha uma relação similar com o material de Gresham, despido desse misticismo e mesmo com sua vocação ao noir e alteração do final, e essa constatação completa um ciclo fascinante para “O Beco do Pesadelo” dentro dessas idas e vindas eternas dos remakes hollywoodianos. A passagem do tempo cria camadas de mitologia nas obras e renova a arte a passos firmes, e isso por consequência torna cada vez mais instigantes esses retornos ao passado. No caso do filme de del Toro, porém, dissocia-se do passado enquanto o persegue, uma contravenção que parece amaldiçoar cada um de seus passos sem nunca encontrar uma resolução dentro de sua proposta de cinema. Um afogamento cometido pelas próprias mãos, ou seja.
“O Beco do Pesadelo” estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 27 de janeiro.
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