“Spencer” vai do terror fantasmagórico à celebração da vida com plenitude
Imagem: Divulgação

“Spencer” vai do terror fantasmagórico à celebração da vida com plenitude

Pablo Larraín enxerga potência do cinema como corretor de desvios do destino na vida real

por Matheus Fiore

Desde o anúncio de que o cineasta chileno Pablo Larraín dirigiria um filme sobre a princesa Diana, os familiarizados com o cinema do diretor já sabiam que não se trataria de uma cinebiografia convencional. Em vez de entrar nas minúcias da trajetória ou na história da vida, Larraín prefere focar no protagonista e construir o clima ao seu redor.

Foi assim com “Jackie”, é assim com “Spencer”. Mas se o filme sobre a viúva de JFK cansa por parecer nunca evoluir, a homenagem a Diana protagonizada por Kristen Stewart parece proporcionar uma evolução no cinema do diretor. Em vez de humanizar a princesa explorando sua infância e suas relações ou construir uma grande tragédia tendo como ápice o acidente que a vitimou, Larraín demonstra grande respeito pela sua figura. O filme possui uma clara escala em seu tom, já que começa assumindo o estranhamento do público ao estar diante de uma figura que partiu de maneira tão trágica. Um tom mórbido, incômodo e provocativo se faz presente nos primeiros momentos de “Spencer”, como se estivéssemos ali diante do fantasma, e não da figura de Stewart dando vida à personagem.

Pablo Larraín (à direita) orienta Kristen Stewart no set (Crédito: Frédéric Batier)

É um momento no qual “Spencer” se assume como um filme de terror, usando som e imagem para causar incômodo em espaços frios e vazios, como se Diana estivesse ressurgindo em vida diante dos olhos do espectador. Aos poucos, essa estranheza é quebrada e o filme assume um tom muito mais brando e afetuoso, como se a mera presença da protagonista e o filme como um todo se retroalimentassem de vida. A obra só se sustenta por ter Diana, e Diana está lá como um fantasma que ganha vida pela arte.

É, de certa forma, algo semelhante ao que Tarantino fez em seu “Era Uma Vez… em Hollywood”, obra na qual usa a potência da arte para dar no cinema a paz que Sharon Tate não teve em vida. Larraín, não por acaso, opta por nem passar perto de mostrar o acidente que vitimou Diana. Na verdade, o diretor trabalha muito na ressignificação da iconografia do acidente. Tudo aquilo que foi especulado e explorado midiaticamente é ressignificado a favor do que havia de bom na vida de Diana. Se hoje no imaginário popular é muito forte a imagem de Diana em um carro, no filme, uma das cenas mais potentes e vivas é Diana dirigindo o carro enquanto canta uma música que ouve no rádio com seus filhos.

Tudo que foi especulado e explorado na mídia é ressignificado a favor do que havia de bom na vida de Diana

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Mas se esse ode à personagem no lugar do estudo mais clássico de personagem se mostra uma abordagem correta, “Spencer” parece pecar na falta de vida para além de sua protagonista. Larraín até tenta explorar outros pontos ao constatar as nuances e divergências entre a figura pública e sua vida pessoal, mas o filme sempre acaba ficando na superfície dessas ideias. Por mais que não seja uma cinebiografia convencional, o longa acaba caindo em convenções bastante simplistas para desenvolver sua narrativa e construir valor nos coadjuvantes.

É de se notar também o esforço de Stewart – outrora injustiçada e hoje reconhecida como a boa atriz que de fato é – para não imputar a Diana um tom sobrenatural ou superior. A atriz trabalha justamente na humanização de sua personagem e se dedica a construir uma mulher que tem seus segredos e suas fragilidades para além de especulações. A Diana de “Spencer” é, antes de tudo, gente. E considero um grande feito Stewart conseguir isso, visto que o filme entrega pouquíssimo material para que a protagonista demonstre e crie afeto para com quem a cerca.

Kristen Stewart se dedica a construir uma mulher que tem seus segredos e suas fragilidades para além de especulações

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Retomando a questão do fantasma, é bem curioso como um filme sobre uma mulher que faleceu de forma trágica começa sombrio mas adquire graciosidade. “Spencer” não começa em vida e termina em morte, mas o contrário. Larraín usa a arte como forma de dar vida à Diana, e o faz começando a obra em tom sombrio e incômodo justamente para assumir estar lidando com a morte. Pouco a pouco, porém, Diana ganha vida, e é esse o grande acerto de Larraín: entender a potência da arte para dar, pela imagem, uma justiça que a vida não foi capaz de entregar para uma pessoa.

Em tempos nos quais somos cada vez mais próximos do mundo virtual (vide os metaversos e os NFTs que não saem do centro das discussões há meses), entender o potencial do cinema como corretor de tragédias e injustiças parece ser um caminho muito interessante, que em 2019 fora trilhado brilhantemente por Tarantino e, em 2021, com suas próprias particularidades, por Larraín.

“Spencer” está em exibição nos cinemas brasileiros.

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