- Cultura 23.Maio.2018
Quando não está preocupado com a mitologia, “Han Solo: Uma História Star Wars” aspira a aventura descompromissada
Problemática produção da Lucasfilm busca explicar as origens do amado personagem da saga, mas se dá melhor nos seus momentos menos pretensiosos
Na primeira leva de filmes de “Star Wars” que foram produzidos depois da venda da Lucasfilm e de todas as suas propriedades para a Disney, é bastante claro o critério de divisão que norteou as decisões de calendário da franquia feitas por Kathleen Kennedy, especialmente agora que quase todos foram lançados no cinema. Enquanto os três novos episódios da saga principal foram criados para reintroduzir e remodelar a marca aos anseios e temas do público mais jovem e moderno, ficou aos derivados a ingrata tarefa de garantir algum agrado maior às gerações anteriores e mais tradicionalistas, sossegando anseios de que a série não seria deturpada pelos novos donos. Assim, se “O Desperta da Força” e “Os Últimos Jedi” brincam com as convenções da franquia, os capítulos do selo “Uma História Star Wars” vão buscar sua missão no passado, se fazendo nos desejos de amarração e complementação da mitologia cujos eventuais buracos tanto fascinaram a imaginação do público por décadas.
É este traço característico que une, pelo menos, as propostas de “Rogue One” e deste “Han Solo: Uma História Star Wars”, duas produções que embora dotadas de ideias muito diferentes sobre como apresentar um olhar “distinto” sobre os cenários e personagens de “Star Wars” ainda não escapam do vazio sintomático que permeia seus respectivos propósitos. É uma sensação que provém em parte da artificialidade por trás de suas confecções, é verdade – se o prelúdio de “Uma Nova Esperança” passou por refilmagens que não foram comandadas por seu diretor, a aventura solo de Han Solo literalmente viu seus realizadores serem demitidos e substituídos por Ron Howard no meio das filmagens – mas é muito mais por conta desta necessidade insaciável em preencher lacunas da história principal que ambos os projetos soam tão destituídos de uma razão de existência maior. Seja Kennedy ou qualquer outro executivo da Lucasfilm, houve uma má interpretação do caráter periférico intrínseco destas histórias como uma desculpa para o fan service imediato, uma que agora o estúdio parece estar tentando resolver internamente.
Se “Rogue One” foi a cobaia que sinalizou todo este conjunto de problemas, em “Solo” já existem sinais de correções de curso nestas “diretrizes gerais”, apontando um direcionamento dado pelo estúdio que almeje abordar a mitologia da série com toda a estrutura de um universo compartilhado, aos moldes dos trabalhos episódicos do Marvel Studios – e a notícia recente de um desejo da empresa em realizar um derivado centrado em Lando Calrissian só deixam mais claros estes sinais. Ao mesmo tempo, porém, o longa estrelado pelo contrabandista tornado herói na história principal não deixa de se comportar como um prelúdio feito para recontar nas telas a origem do personagem, e é a partir daí que a produção começa a entrar em curto circuito.
⚠ AVISO: Contém spoilers
Conforme a história vai se desenrolando, fica claro que a principal missão do roteiro escrito por Lawrence Kasdan e seu filho Jonathan está no esforço de criar as bases do arco de Han Solo (agora interpretado por Alden Ehrenreich) no mesmo passo que apresenta a gênese de sua lenda. Além de recontar momentos do cânone como a realização do percurso Kessel e a forma como o herói conseguiu a Millenium Falcon das mãos de Lando (Donald Glover, dedicado na tarefa de copiar todos os trejeitos de Billy Dee Williams), o longa é também sobre o processo de formação do protagonista, desde sua introdução ao mundo do crime aos traumas que o tornam no tipo desconfiado e esperto da trilogia original.
Este procedimento, que nutre alguma inspiração nos faroestes tradicionais de figuras consagradas como o “Choque de Ódios” de Jacques Tourneur e o “A Mocidade de Lincoln” de John Ford, sem dúvida mostra-se promissor quando alinhado ao pastiche de gêneros que é pedra fundamental da franquia, mas na esmagadora maioria do tempo parece estar mais preocupada em completar a mitologia do personagem que exatamente expandi-la. Embora “Solo” se proponha a ser o capítulo despretensioso da franquia “Star Wars”, em grande parte do tempo ele opera sob a necessidade de servir a um propósito maior, mesmo que indiretamente ligando seu protagonista a acontecimentos maiores da gálaxia ou preenchendo espaços vagos de seu perfil – mesmo eles não precisando na maioria das vezes, como é o caso da explicação do sobrenome do personagem que é forte candidata a ser o novo “midichlorians” das discussões entre os fãs.
Neste sentido o filme não difere muito em seus problemas dos vistos em “Rogue One”, mas ao mesmo tempo em que acontece esta prestação de serviços ao passado há também uma preparação para o futuro da franquia que definitivamente não deve passar batida pelo espectador. Entre as seguidas menções à Tatooine – os Hutts, o “gângster arregimentando um exército” mencionado pelo mentor de Han, Beckett (Woody Harrelson) – a principal adição que o longa faz ao cânone de “Star Wars” é a Liga Escarlate, organização de criminosos inédita que deve servir de antagonista maior aos próximos derivados, incluindo aí o provável episódio estrelado por Obi-Wan Kenobi por conta da aparição surpresa de um grande vilão que é reintroduzido à série na história.
“Solo” tenta ser o capítulo despretensioso da franquia, mas na maior parte do tempo serve a um propósito maior
Todos estes momentos relacionados à mitologia e o cânone, porém, servem muito mais de empecilho à trama do derivado que como parte integrante e funcional da produção. A bem da verdade, é quando o longa se despe destas necessidades de conexão e almeja abraçar toda a despretensão de suas aventuras que “Solo” de fato começa a decolar, principalmente na ação onde a direção de Howard pode efetivamente abordar as estruturas de um filme de assalto. Cenas como a do roubo de um carregamento de minerais refinados valiosos ou a própria corrida Kessel são responsáveis por dar algum fôlego à história, muito porque seu frenesi permite à narrativa que se guie pela rotina de sacrifícios e atos heroicos, um terreno bastante conhecido por qualquer um de seus realizadores.
O próprio trabalho de Howard nesta sua incursão pela franquia é impressionante dado o cenário com o qual adentrou no set, vale acrescentar. Embora tenha assumido o leme na metade da produção e seja responsável por algo em torno de 70% das filmagens, o diretor na maior parte do tempo mantém as aparências de uma unidade no projeto a partir de seus tradicionais jogos de texturas, que com o uso de cores mais fortes dão vida particular ao mundo criminal habitado por seus personagens. Os poucos momentos que soam desconjuntados são aqueles que mais parecem com o material de Phil Lord e Chris Miller, realizadores originais do projeto que foram demitidos em meados do ano passado e são creditados aqui como produtores executivos: princípios de piadas recorrentes e situações como a rebelião dos robôs no planeta extrator (local do segundo assalto da trama) são tratadas com estranha gravidade pelo longa, como se tivessem sido mal interpretadas pelos novos comandantes e abandonadas no meio do caminho.
Quando se despe das necessidades de conexão e almeja a despretensão, “Solo” enfim começa a decolar
Tais medidas, porém, também não são capazes de ocupar o vazio temático em torno da história, um que faz o filme orbitar próximo da banalidade em caráter quase constante. Mesmo que Howard e os Kasdan busquem ao máximo imprimir valores e temas da franquia na trama, “Solo” no fim acaba se revelando uma colagem um tanto decepcionante de todos estes elementos, perdidos em gestos sem grandes significados e em uma narrativa “tradicional” que não consegue encontrar um único ponto de atração. Quase como em “Rogue One”, todos os novos personagens e situações introduzidos pela produção não parecem ajudar a constituir algo inédito na série, mas soam como se existissem apenas para preencher uma cronologia já bem abastecida; Han e todos as outras figuras conhecidas, enquanto isso, não produzem nada além de refazer nas telas aquilo que disseram há mais de quarenta anos, incapazes de abraçar qualquer traço diferente às suas personalidades.
Tudo que o longa pode fazer então é continuar a equilibrar seus malabares, fazendo acenos ao passado e ao futuro da franquia em menções rápidas a partes do cânone que farão sentido apenas aos fãs ardorosos de “Star Wars” (Aurra Sing, por exemplo) entre uma ou outra relação de “brodagem” mal ensaiada pelo roteiro. O problema de “Solo” não é a a costura de mitologia em si, mas a forma como ela ocupa todo o espaço deixado pela ausência dos dramas reais da família Skywalker, sabotando uma aventura espacial em prol de um remendo de universo que é um tanto impraticável de se assistir. “Star Wars” pode ter construído seu espaço na cultura pop por conta do universo que possui, mas sua estrutura existe para além dos planetas e personalidades que cita, e esta é uma noção que o filme de Howard infelizmente não possui.