O Salvador da Disney: B9 entrevista John Lasseter

O Salvador da Disney: B9 entrevista John Lasseter

por Fábio M. Barreto
O Salvador da Disney: B9 entrevista John Lasseter

Andar pelos corredores da Walt Disney Animation hoje em dia é uma espécie de visita ao paraíso. Não pelas inúmeras obras de arte espalhadas pelo prédio, cuja entrada é representada por um gigantesco chapéu de Mickey Mouse, mas sim pelo clima de felicidade e, por que não, devoção dos funcionários ao seu mestre: John Lasseter.

Em pouco tempo à frente da powerhouse de animação, uma das peças-chave no nascimento da Pixar, faz valer a alcunha de “Salvador da Disney”, num momento em que a franca decadência de roteiros e uma sequência incômoda de fracassos marcavam as animações da empresa.

O segundo semestre de 2008 marcou as primeiras estreias – e sucessos – do novo pensamento da companhia, mas foi só a ponta do iceberg. Lasseter mudou os rumos da história da animação mundial e ainda tem muito gás para queimar. Afinal, ânimo é o que não falta a esse sujeito que começou trabalhando nos parques temáticos da Disney [como guia do Jungle Cruise] e hoje é um de seus maiores executivos, ou, em suas palavras, “um artista apaixonado”.

Seja pela camisa descontraída, com motivos florais, ou por seu jeito dedicado e simpático para tratar sua equipe – e jornalistas – da maneira certa, John Lasseter faz da criatividade uma arma simples e eficaz na luta cada vez mais acirrada no mundo da animação. Embora já tenha criado clássicos como “Procurando Nemo”, “Toy Story” e “Wall-E”, Lasseter transparece a mesma mocidade e irradia a alegria de um jovem animador que desbravou o mundo da animação computadorizada, ainda em seus tempos de Pixar, e voltou ao estúdio que “não queria saber de animação por computador” com alto estilo.

“Bolt – Supercão” foi seu primeiro projeto coordenado desde os primórdios, mas nem só de animação 3D vive a nova geração da Disney. O retorno à animação clássica aconteceu em 2009 com “A Princesa e o Sapo”, que não foi bem de bilheterias, mas entrou para a história de qualquer maneira ao apresentar a primeira princesa negra do estúdio.

Boa parte do quartel-general da companhia em que a equipe trabalha pelos últimos anos ficou caracterizada como Nova Orleans e dentro do ambiente do século retrasado, depois foi tomada pelos heróis dos contos de fadas, valentões, torres e princesas cabeludas, pois Rapunzel, ou melhor, “Enrolados”, estava em produção. Inspiração para todos os lados – mais um presente do estilo Lasseter. Cada equipe de produção decide como quer decorar seu espaço.

Quer mais uma vitória para Lasseter? “Up – Altas Aventuras” foi a primeira animação a abrir o Festival de Cannes e venceu o Oscar de Melhor Animação em 2010 e é ele quem está envolvido até os dentes em “Carros 2”, primeira continuação arriscada da Pixar, já que Toy Story sempre inspirou confiança máxima por seus ótimos resultados e grande força de público.

| ENTREVISTA |
B9: O primeiro dia como diretor criativo da Disney deve ter sido marcante, não? Qual foi a chave para mudar tanto o clima em tão pouco tempo?

JL: Estava muito nervoso, pois nunca havia participado de algo tão grandioso assim. Na Pixar, fui o primeiro animador a trabalhar com computadores. Digamos que fui o primeiro sujeito treinado nesse sistema no mundo todo e, de repente, aquela aventura se transformou numa companhia inteira. Chegar num lugar cheio de história e responsabilidade como a Disney foi muito marcante. Depois que tomei contato com os artistas da casa, implementei uma filosofia simples: devolver o estúdio para essas mentes criativas. Há uma diferença fundamental entre um estúdio guiado por executivos e outro comandado por cineastas. A Pixar sempre foi uma casa de cineastas, desde o princípio, e nunca perdeu seu rumo. Quando se pensa assim, o resultado são filmes capazes de agradar a todos, ter seu senso de humor único e, digamos, um coração.

O Walt dizia que “para cada risada, deve haver uma lágrima”. Acredito muito nisso, pois motiva a criação de filmes relevantes, marcante do ponto de vista visual e que inspire a equipe a ultrapassar seus limites e ter grande orgulho pelo que faz.

Os grandes filmes da Disney duram para sempre, mas, além disso, permanecem por várias gerações nas famílias de quem os fez. Há alguns anos, fui abordado por uma família cuja avó havia sido pintora de células em “Branca de Neve e os Sete Anões”. O orgulho presente na voz daquelas pessoas foi inesquecível e aliou-se a algo que Steve Jobs me disse certa vez [“faço computadores e tecnologia cujo ciclo de vida dura, no máximo, 5 anos; depois disso, meu trabalho fica obsoleto e preciso de algo novo”]. Grandes filmes perduram e emocionam. Dar às pessoas um sentimento mais nobre do que “apenas um trabalho” faz nosso ambiente mudar, nossa vida muda e nossos filmes mudam. Se conseguirmos realizar vários filmes inesquecíveis por essa equipe, já é um grande passo para arrumar o estúdio.

Como balancear um estúdio guiado por cineastas com os interesses dos executivos, ou seja, posicionamento artístico com a necessidade comercial?

Discordo quando se diz que se deixarem um cineasta fazer o que der na telha, ele vai produzir um filme que ninguém, além dele, vai gostar. Isso não é verdade. Os animadores escolheram essa vida, então isso já diz algo sobre eles. São pessoas que cresceram assistindo aos filmes de Walt Disney ou de Chuck Jones, na Warner Bros. Portanto, se ninguém interferir, é esse tipo de filme que faremos. Sou como eles, aliás. Mas tanto a Pixar quanto a Disney são negócios, então um dos objetivos é fazer filmes lucrativos, especialmente na Disney, por conta dos parques temáticos, licenciamento, on-line, interactive, etc.

A animação é a gênese de todo esse processo, pois alimenta todos os departamentos da companhia ao redor do mundo, como se fosse uma locomotiva.

A grande chave é deixar a criatividade desses profissionais aflorar, que suas influências vão cuidar do resto. Não acho que se deva mudar o modo de pensar ou trabalhar para fazer um filme comercial, ou criar algo essencialmente interessante para a família ou para crianças.

Focar num público pode ser maléfico, e acredito piamente que uma boa história vai agradar a quem gosta de cinema, independente do tipo de público. Devo dizer que essa geração de animadores sabe muito mais como ser comercial ou como fazer algo de sucesso, mais do que eu ou do que qualquer executivo de Hollywood. Basta saber dar as diretrizes e manter o trem no ritmo e direção corretos.

Lasseter com Randy Newman no estúdio de produção da trilha sonora de Carros

Por falar em balanço, seus filmes, ou aqueles que produz ou apenas coordena, parecem nunca falhar. Sei que não existe fórmula secreta, mas o que eles têm em comum?

Três coisas compõem um filme de sucesso, especialmente uma animação. História envolvente, que mantenha o espectador vidrado na tela, querendo pular para dentro da história, e desesperados para saber o que acontece a seguir; personagens memoráveis e altamente interessantes, aliás, interessante é o grande termo, pois até mesmo os vilões devem despertar interesse; e essa história e personagens devem viver num mundo acreditável, não realístico, mas que faça sentido para essa composição. Essas três coisas estão intimamente relacionadas e são extremamente importantes. Muita gente acha que “Carros” é um filme sobre carros ou que “Procurando Nemo” fala sobre peixes. Bem, esses são os personagens e parte de seu ambiente, mas são suas personalidades e histórias que transcendem sua natureza física e tocam o público, criando uma conexão intensa.

Chamo isso de fundação, que significa a ligação entre filme e espectador, que se identifica em algum nível, mas se vê diante de uma situação que nunca imaginou antes. Uma situação sem potencial para causar empatia não tem muita razão de ser.

Embora façamos pesquisa sobre todos os assuntos (carros, trailers, no caso de “Bolt”, ou peixes), a essência tem que atingir quem gosta, ou não, do assunto. Essa é minha filosofia.

Por que ninguém consegue fazer um ser humano perfeito na animação?

Porque é quase impossível. Tanto a Disney quando a Pixar (que fez “Wall-E”) pensam do mesmo jeito: não queremos fazer isso. Para ver pessoas na tela, vemos um filme com atores certo? O ser humano é muito complexo e todo mundo já se olhou no espelho uma vez na vida, então, quando você vê alguém tentando imitar a gente no computador, vai ficar diferente e muito estranho. Fica uma sensação esquisita, não é? Então, sempre criamos pessoas que façam sentido naquele mundo e pronto.

Qual a importância das prévias com focus groups em seus filmes? Quem você usa como parâmetro para testar os projetos, aliás?

Minha esposa Nancy e meus cinco filhos sempre foram meu melhor grupo de controle. Mostro algumas versões brutas dos filmes e só observo as reações. E pode acreditar, crianças assistindo a um filme em casa são a plateia mais sincera que você pode querer. Se eles ficam vidrados e, depois, começam a falar a respeito, repetindo frases e dizendo o que gostaram, você está no caminho certo. Se perdem o interesse, ou, recentemente, começam a enviar mensagens de texto sobre outro assunto qualquer, é bom se preocupar e rever algumas coisas. Mostrei uma versão não finalizada de “Bolt” e eles simplesmente piraram com o Rhino [o hamster dentro da bola], foi um tiro certeiro. Mas não exagero na exposição da família. Mostro uma ou duas vezes, depois eles esperam para ver a versão final.

Três coisas compõem um filme de sucesso: História envolvente, que mantenha o espectador vidrado na tela, querendo pular para dentro da história; Personagens memoráveis e altamente interessantes; E uma história e personagens habitando um mundo acreditável, não realístico, mas que faça sentido para essa composição.

Mas o caso de “Wall-E” não havia muitas frases de efeito para eles decorarem, certo? Pouco diálogo criou algum tipo de desafio especial nesse filme?

Ponto interessante, mas não. Chuck Jones, um de meus mentores, disse que “animação de qualidade deve permitir ao espectador desligar o som e, ainda assim, entender a história”. O diálogo em si não é o instrumento para se contar a história; é algo superficial, pois, na verdade, o subtexto da história é onde as coisas realmente acontecem. Deixar toda a responsabilidade com o roteiro não faz sentido. Veja nossos curtas-metragens, por exemplo. Praticamente todos da Pixar, excetuando-se “Boundin”, não têm diálogo. É isso que os animadores fazem, sabe. Por isso nunca entendi direito tanta gente falando sobre a ausência de diálogo. Cada filme representa um desafio, pois cada um significa um novo passo no desenvolvimento da tecnologia e é, por definição, totalmente diferente do filme anterior. Repetição leva à mesmice e, quando algo cai nesse ponto, temos apenas um “trabalho” nas mãos, e isso não é motivador.

Aliás, qual a diferença entre Walt Disney Animation e Pixar?

A única diferença é que a Pixar só faz filmes no computador, como “Wall-E” e “Toy Story”. Já a Disney faz animações no computador e também com desenhos feitos à mão, afinal, tudo que Walt Disney deu ao mundo foi desenhado por alguém. Precisamos manter essa tradição e nunca deixar que as pessoas se esqueçam da importância do talento individual dos profissionais. Sou muito feliz por ter uma história com essas duas companhias.

Um dos papéis fundamentais da Disney, em termos culturais, é criar novos modelos para gerações de crianças ininterruptamente. Essa necessidade crescente de referências visuais pode, em algum momento, prejudicar a imaginação antigamente proposta pelos livros e histórias de ninar?

Que ponto fantástico para se falar. Todos os filmes em que me envolvi começaram do zero. Somos contadores de histórias, então temos nossas próprias histórias para contar. Alguns profissionais, aqui na Disney, trabalham com materiais já estabelecidos, mas por razões de manter as licenças em desenvolvimento. Mas esse assunto é realmente interessante, pois, quando se é criança, cada história ou livro gera uma imagem mental. É isso que adoro em grandes autores ou contos, serem capazes de nos cativar a ponto de imaginarmos todo um mundo a partir de palavras. Confesso que me desapontei absurdamente com “Chitty Chitty Bang Bang”. Era meu favorito, li o livro três vezes. Todos os meus filhos leram. Aliás, um deles está lendo agora. Fiz até um modelo do carro e delirei quando me contaram sobre o filme. Minha mãe me levou até o Chinese Theater e, lembro como se fosse ontem, pensei “isso não tem nada a ver com o livro!”

Frustrei bastante, mas desde aquele dia imaginei o quão difícil deveria ser transpor algo de um livro para a tela. A imaginação nunca vai terminar, mas o trabalho de quem adapta esse tipo de material é cada vez mais complicado, especialmente com contos de fadas. Esse gênero é traiçoeiro, pois pode gerar mais becos sem saída do que guias minuciosos pelos mundos mágicos. “E ele vagou pela floresta por 30 anos…” Como cineasta, preciso de algo melhor que isso para poder criar e deixar a imaginação fluir.

Quando você dirige a versão americana dos desenhos de Hayao Miyasaki, como “As Viagens de Chihiro” ou o recente “Ponyo”, qual a maior preocupação?

Traduzir corretamente, sejam diálogos ou situações. Em Chihiro, por exemplo, os japoneses sabem do conceito de uma casa de banho e, quando não sabem, o visual trata de explicar. Quando apresentamos uma obra-prima como essa ao espectador ocidental, ele não tem essa bagagem e não vamos ousar mudar o desenho, então, uma linha de roteiro aqui e ali precisa ser modificada e adaptada para inserir a informação necessária para situar o espectador. Meu trabalho é muito mais de um facilitador do que de direção em si.

3D é linguagem ou apenas um truque? Como a Disney vai encarar essa ferramenta?

Linguagens demoram para ser estabelecidas, mas duvido que alguém dentro da companhia se disponha a usar o recurso só para fazer graça ou chamar público. Se não for uma técnica viável, não há razão para inserirmos em nossos filmes. Claro que é muito mais fácil, especialmente na animação, na hora de converter filmes para 3D – como foi o caso de “Toy Story” 1 e 3, e também de “A Bela e a Fera” – mas tudo isso foi muito discutido.

Se estamos fazendo é por validade qualitativa, não apenas por motivações de mercado. Garanto que não temos planos para converter todo o catálogo. Pelo menos não no que depender de mim.

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