Escola de Cinema: A Fotografia é mesmo linda?
“A fotografia está linda!”
Com seus altos altos níveis de clichê e, na maioria das vezes, repleta de falsa intelectualidade, essa frase é uma das mais odiadas por quem realmente gosta, entende ou faz cinema. A razão é simples, normalmente isso significa: o filme é bonito, se desconsiderarmos os alucinados que tentam elocubrar sobre o assunto sem ter ideia do que estão falando.
Então, o que diabos é essa tal “fotografia”? De modo bem prático, é o resultado visual das decisões do diretor e do diretor de fotografia (em inglês, cinematographer), das necessidades da cena e do clima desejado. E isso envolve muito mais do que “estar bonito” ou apontar a câmera, manter o foco, esperar a cena terminar e repetir o ciclo. Porém, tudo isso é fruto de um longo processo de aprendizado e compreensão. Não entendia a profundidade desse trabalho até me deparar com um DP (diretor de fotografia) que precisava aprender tanto quanto eu nas filmagens de “Filhos do Fim do Mundo” (When It Ends, 2011, EUA/BR).
Antes de continuar, veja o filme:
A ideia desse texto surgiu quando o Saulo Mileti perguntou: o que é o A.S.C que aparece depois do crédito do Diretor de Fotografia em todos os grandes filmes de Hollywood? É a abreviação para American Society of Cinematographers, o sindicato da categoria e também representa a chancela do nível de trabalho do profissional. A ASC só aceita membros experientes, testados e capacitados a executor o trabalho. Isso implica em salários garantidos e, claro, mais altos.
Em termos práticos, ter um DP alinhado no set é fundamental. Ele é o maior aliado do diretor e isso não se discute. Tomemos “O Resgate do Soldado Ryan”, por exemplo, com fotografia de Janusz Kaminski. Todo mundo fala da sequência do desembarque na Normandia por dois motivos: a câmera na mão do Spielberg e o visual. Misturando técnicas de exposição, velocidade de filme e outros elementos controláveis diretamente na câmera – e preparados com grande antecedência –, foi possível encontrar aquele clima meio sujo, meio antigo, com a saturação ideal de cores e grande realismo. De forma efetiva, o visual ajudou a contar a história, ajudou a dar peso e relevância aos atos de Tom Hanks, Tom Sizemore e cia.
Esse é o cenário ideal, no qual o DP teve tempo para experimentar em película e ter a fórmula certa para as filmagens. Habitualmente, aqui nos Estados Unidos, pelo menos, quando se inicia um projeto grande, é comum o contato entre o DP e a Kodak, por exemplo, para que o profissional tenha amostrar de vários tipos de película – de acordo com suas orientações iniciais – para testes de campo. O laboratório fornece alguns rolos e o sujeito escolhe o melhor. No mundo das câmeras digitais, o laboratório sai e quem entra em cena é a locadora de câmeras, que vai tentar encontrar a combinação de equipamento capaz de maximizar o resultado desejado.
Tudo isso mostra apenas um aspecto da preparação necessária e do nível de envolvimento entre diretor e DP. Outros fatores fazem a diferença, claro, entretanto, para efeito dessa conversa aqui só esse já basta, pois o maior problema dos sets de filmagem – especialmente os amadores ou independentes – é exatamente a falta de sincronia ou até mesmo a disputa pelo poder. Com gastos gigantescos de aluguel de equipamento, locações e etc, cada segundo em set custa horrores e todo mundo sabe, tanto é que diretores demorados são extremamente criticados nos bastidores, entretanto, pior que um diretor lerdo, é um diretor incapaz de escolher o DP certo e aí o problema começa. Passei por algo assim e fui descobrir que existe uma tendência marcante em fotógrafos iniciantes para tentar impor seus gostos ou ideias. De fato, são sujeitos que querem – e pode até acabar conseguindo – ser diretores, mas ainda não perceberam.
O primeiro problema é a inconsistência. Quando há dois comandantes, o barco fica virando de um lado para o outro até que o controle seja estabelecido. Isso afeta a imagem, prejudica o objetivo visual desejado e, inevitavelmente, vai te deixar com um monte de cenas visualmente díspares nas mãos na hora de editar. Num filme maior, o problema seria identificado na primeira exibição de diárias, porém, quando se trata de algo independente o estrago pode ser grande demais para ser reparado, afinal, refilmar é um dos maiores pesadelos do diretor indie. E uma coisa importante: arrumar na pós-produção não é uma opção aceitável, pode apostar.
Existe essa escola de pensamento sobre qualquer coisa ser resolvida, melhorada ou decidida com a manipulação digital e isso está criando uma gerações de apertadores de botão que se dizem DPs, afinal, para que trabalhar direito atrás da câmera se, meses depois, um técnico vai arrumar suas cagadas? Tenho ouvido de muitos produtores indies por aqui que “não precisa de luz para a 5D” ou que “é só filmar em RAW e a pós resolve”. Quer dizer, o sujeito já entra no jogo pensando num pênalti nos acréscimos da prorrogação? Não digo isso só pelo aspecto da arte, mas do cuidado com a produção. Imagina como esses caras estão ficando preguiçosos e acomodados? Esperar resultado bom disso é, no mínimo, utópico. Isso sem entrar nos debates iniciados pela câmera que foca depois.
Esse cenário nos leva a dois pontos importantes: identificar que tipo de DP você quer contratar e qual a relação dele com a obra. Existe o “DP técnico ou Apertador de Botão”, aquele que sabe tanto sobre a máquina, as lentes e as configurações que considera o diretor um ser inferior; esse cara vai entregar uma cena tecnicamente perfeita, mas sem input criativo e, se der errado, bota a culpa no diretor e no elenco. Ele é praticamente um assistente de câmera melhorado, entretanto, é ideal caso você tenha um diretor controlador e com tendências egocêntricas. As chances de atrito serão pequenas.
Também existe o “DP Fominha”, basicamente um cara se considera um storyteller melhor que o diretor e quer impor suas ideias de movimento, linguagem e, as vezes, até decisões de roteiro. “Na minha versão, a cena deveria acontecer assim” foi a pior frase que ouvi até hoje, num set de filmagens. Esse cara é encrenca certa e só baixa a bola quando erra feio ou leva porrada (aka “ou trabalha em grupo ou vai pra rua”). E, no meio de tudo isso, temos o “DP Criador”, um cara disposto a colaborar, cheio de ideias e questionamentos na pré-produção, mas totalmente fiel ao acordo final durante a execução. Essa é a melhor configuração. A mais cara e difícil de achar, mas é a ideal.
E nem vou entrar nos méritos organizacionais necessários a um DP (coordenação de iluminação, grip, operadores e assistentes de câmera, DIT e etc). É um trabalho importante e que transcende a simples beleza da imagem, alias, às vezes, o objetivo é o inverso. Pensando rapidamente aqui, penso nas cenas noturnas com a câmera na mão alucinada, granulada à enésima, e tremida de “Zona Verde”, fotografado por Barry Ackroyd e dirigido pelo Paul Greengrass. Concorda que nada ali teria dado certo se não houvesse uma única visão em execução? Tudo isso pode parecer óbvio, mas a realidade dos filmes de baixo orçamento é muito diferente do paraíso ideal de Hollywood. Ter que trabalhar com o que há de disponível é um fator inegável em projetos pequenos, entretanto, tomar certos cuidados na escolha são fundamentais. Seus clientes ou espectadores vão sentir instantaneamente, pode apostar.
As filmagens de “Filhos do Fim do Mundo” aconteceram meio a ferro e fogo por conta de vários aspectos apresentados acima e os problemas foram incontáveis. Cheguei ao ponto de questionar se valeria a pena seguir em frente, mas precisei colocar a casa em ordem depois de um shot que levou 2 horas para ser preparado, tinha duração de 8 segundos, simplesmente, não ficou bom. Que o sujeito era apertador de botão eu já sabia, entretanto, houve uma série de atritos com o diretor e com a equipe quando, do nada, o DP resolveu sair dando ordem em departamentos fora de seu escopo e até mesmo dirigindo atores. Fiquei menos frustrado quando descobri que isso é algo muito comum por aqui, portanto, cuidado é preciso. No fim das contas, tudo fez o processo de edição ser muito mais complicado e a correção de cor, por exemplo, teve papel fundamental no resultado final.
A maior lição, sem dúvida, foi a compreensão de que é preciso ter um DP tão ou mais preocupado que o diretor com a qualidade visual do que ele vai apresentar. Ou seja, se todo mundo deu ok e as condições eram ideias, no momento em que alguém começar a gravar, significa que tudo que está naquela tomada está 100% de acordo com o objetivo do filme. É a responsabilidade do diretor e do diretor de fotografia combinada, a serviço da história. Um apertador de botão quer saber de enquadrar, manter em foco e gravar. No dia em que isso for suficiente, o cinema estará a caminho do buraco. É algo a se pensar. É algo que nunca vou esquecer