Paixão, do latim sofrimento
Tenho lido muitos críticos dizerem que a “A Paixão de Cristo” não passa de um snuff film, pois se concentra apenas em mostrar o calvário e cenas explícitas de violência gráfica. Discordo. Na minha opinião, a violência contida no filme não é de forma alguma gratuita, e não duvide, ela contém uma mensagem, mais forte do que eu imaginava.
Vemos Cristo ser espancado, chicoteado e ter partes de sua carne removidas por garras de metal, tudo a fim de ilustrar o martírio de forma realista e chocante. Mel Gibson fez o filme como quis, foi fiel ao “roteiro original” e faz questão de dar closes em cada detalhe. Claro que após certo tempo começamos a ficar anestesiados com a violência, mas a ferida moral continua sempre aumentando.
Definitivamente, não é um filme para quem tem estômago fraco. Gibson não poupa o espectador dos detalhes sórdidos, como o som de ossos quebrando, por exemplo. E funciona: o sofrimento contido no filme é palpável e terrível.
Mas ao mesmo tempo, não podemos acusar Gibson de ser apenas técnico e abusar das cenas violentas, já que chocar foi exatamente a sua intenção e a maneira encontrada para nos causar reflexão.
Não estou aqui para discutir o aspecto religioso, e nem sou a pessoa mais indicada para isso. Mas a história mostrada no filme todo mundo já conhece e dispensa a apresentação de seus personagens. Porém, é impossível ficar indiferente ao que é mostrado na tela.
A comoção é geral. Fiquei surpreso ao ver que todos na sala de cinema se mantiveram em silêncio durante toda a projeção do filme, e ao final, todos sairam calados, perplexos com o que tinham acabado de assistir.
O impacto é grande. Tanto pela história em si, como pela maneira que Mel Gibson reproduziu isso na tela. E tudo colabora para impactar, tanto pela maravilhosa direção de arte que recria cada detalhe da antiga Jerusálem, como pela magistral fotografia de Caleb Deschanel, proporcionando momentos de pura poesia cinematográfica.
O uso da camêra lenta também é sábio, dando a dramaticidade necessária a certas cenas, como quando os soldados prendem Jesus no jardim e quando Judas tenta agarrar o saco de moedas.
Numa espécie do que podemos chamar de “Os melhores momentos de Cristo”, diversas cenas de flash-back embutidas no filme servem para dimensionalizar Jesus, nos mostrando como era o homem que está ali sendo torturado. Uma das cenas de maior emoção é quando Maria vai ajudar seu filho durante a Via Crucis, e se lembra de um momento da infância de Jesus.
Outra cena que me impressionou pela beleza técnica, é aquela em que Maria Madalena está prestes a ser apedrejada, e aparece um dedo riscando na areia e momentos depois ela segurando no pé de Jesus.
Uma personagem que eu achei muito interessante no filme, foi o próprio diabo, representado aqui por uma mulher. Vemos o demônio no jardim, conversando com Jesus, tentando-o convencer de que aquilo pelo qual ele vai passar não vale a pena.
O diabo segue Jesus durante todo o filme, e amaldiçoa aqueles que traem Cristo. A cena das crianças malhando Judas é particularmente assustadora. Em nenhum momento vemos satanás como uma figura ruim, apenas alguém que acha que não devemos nos conformar com a situação.
Uma das maiores polêmicas fica em relação ao suposto anti-semitismo do filme. “A Paixão de Cristo”, assim como na obra em que é baseado, a Biblía, deixa claro que sim, foram os judeus culpados pela morte de Cristo. Porém, em nenhum momento o filme condena toda a comunidade judaica por isso.
Ao mesmo tempo que mostra Caífas exigindo a crucificação de Jesus, mostra outros integrantes do povo judeu dizendo que não há provas para isso. Na verdade, quem se diverte com os açoites a Jesus são os romanos, e não os judeus. Acusar o filme de ser anti-semita, seria o mesmo que dizer que todos os alemães são culpados pelo holocausto.
Não há nenhum diálogo no filme que acentue o anti-semitismo, pelo contrário, faz até questão de indicar Jesus como “Rei dos Judeus”. A própria Bíblia é mais anti-semita do que o filme de Mel Gibson.
A atuação de Jim Caviezel é excelente, nos demonstrando o sofrimento e a serenidade de Jesus. Aliás, cabe dizer que no ótimo “O Conde de Monte Cristo”, Caviezel já havia sido extremamente emocionante e realista em seu personagem. Maia Morgenstern no papel de Maria também está perfeita.
Após 2 horas de tortura, o final de “A Paixão de Cristo” reserva um momento especialmente belo. A ressurreição de Cristo é mostrada numa linda tomada e finaliza o filme de modo a nos deixar refletindo sobre tudo o que aconteceu. É isso que acontece com quem assiste: reflexão.
O maior mérito de “A Paixão de Cristo” é não cair no lugar comum, de nos mostrar uma história açucarada e carola. Aqui, o que mais é levado em conta é a dor de um homem injustiçado, aceitando o seu destino e ainda rezando por aqueles que o fazem sofrer, e também a dor de uma mãe que assiste o sofrimento de seu filho, tendo de aceitar que a morte da pessoa que mais ama faz parte de um plano maior, que está acima de nossa vontade.
Por isso discordo quando dizem que a mensagem de Jesus não está contida no filme. Ela está lá sim, clara, e vai muito além das duas horas e dez minutos de projeção. E hoje, após o filme, eu tenho ainda mais certeza de que a humanidade não entendeu “porra” nenhuma do que Jesus falou.