Photoshop: A ética da manipulação digital
Quando a liberdade proporcionada pela ferramenta distorce a verdade e cria conceitos inatingíveis de perfeição
O fotógrafo Rodrigo Braga fez de seu ensaio Fantasia de Compensação* uma forma de manipulação fotográfica única. Ele que deixava de lado o uso do Photoshop em seus trabalhos, criou um projeto onde a ferramenta é essencial. Ao fundir sua própria cabeça com a de um cão, o fotógrafo criou uma metamorfose perturbadora e impressionante. Produzindo, dessa forma, um trabalho que une o poético e todo o potencial das técnicas utilizadas no Photoshop.
“Eu me incomodava com o fato dos recursos digitais estarem sendo associados à fotografia apenas como um incremento formal à imagem captada pela lente, ou mesmo apenas como uma exagerada sucessão de aplicações de efeitos. Queria algo que operasse pelo quase imperceptível e deixasse o espectador tonto, flutuando entre o virtual e o palpável. Tinha a vontade de ‘fabricar’ em ambiente digital uma ‘realidade’ que, de qualquer forma, pudesse ter ocorrido em verdade, pela habilidade manual humana“, diz Rodrigo.
O trabalho de Rodrigo mostra um uso totalmente artístico do Photoshop, criando essa realidade que o artista buscava, além de fugir dos tratamentos que estamos acostumados em peças publicitárias, capa de revistas, retoques em fotos pessoais etc. Ele também nos faz pensar como hoje em dia não conseguimos fugir dos efeitos digitais. Uma foto amadora ou profissional sempre tem o mínimo de retoque e, além disso, estamos cada vez mais familiarizados e acostumados a enxergar e aceitar essas manipulações.
Além da praticidade, a ferramenta permite também a intensificação de esteriótipos e a idealização de um ser humano perfeito
Artisticamente ou não, a verdade é que muitas vezes nos perguntamos se um bom efeito sobrepõe, substitui ou até mesmo tem mais atenção que o clique do fotógrafo. Em caso de projetos fotográficos concebidos como arte – como em Fantasia da Compensação – seria impossível pensar a imagem sem os efeitos digitais. Sem o Photoshop o fotógrafo não conseguiria criar o que queria.
Qual o limite?
O bom senso do uso do Photoshop fica por conta da liberdade artística e da vontade do profissional em utilizar os efeitos que a ferramenta permite. Mas quando as fotos são feitas para outros fins não podemos seguir o mesmo pensamento.
Para Kaue, diretor de imagens do Grupo Luz, o limite do uso do Photoshop é a qualidade. Ele tem que contribuir com a imagem e tornar a foto melhor, com a visualização desejada. Para isso é necessário uma ética profissional como em qualquer outra profissão, a responsabilidade deve prevalecer.
“O maior erro de um profissional é achar que ele pode tudo, não importando as regras físicas existentes na natureza. Tal como dar uma caneta e papel a qualquer pessoa não faz dela um poeta, é necessário especializar-se em seu manuseio. O maior mito do Photoshop, com certeza, é dizer que qualquer um pode usá-lo. A grande verdade é que ele pode ser aprendido por qualquer um, mas o uso ético e correto vem após grande experiência e estudo”, diz Kaue.
Campanhas como “A Beleza Real” de Dove ajudaram a colocar o tema em discussão entre público e mercado
É claro que as manipulações fotográficas não são um privilégio do dias de hoje. Antigamente os profissionais confeccionavam suas montagens no laboratório. Com a chegada do Photoshop, as necessidades criativas e o aperfeiçoamento com rapidez e agilidade do trabalho com imagens foram supridas.
O grande problema é o mal uso da oportunidade. Muitas vezes o limite do uso da ferramenta para melhorar a qualidade de uma imagem é distorcido e deixado de lado. Ao mesmo tempo em que o software proporciona rapidez, praticidade, e criação de ensaios artísticos, ele permite, também, a intensificação dos esteriótipos, a idealização de um ser humano perfeito e as manipulações fotográficas para fins políticos.
No caso do fotojornalismo a qualidade da foto não pode sobrepor o comprometimento de um fato noticiado ou histórico, seja na captura da foto ou na pós-produção. Não é o mesmo trabalho de fotografia para publicidade ou arte, onde o tratamento é maleável para cada tipo de objetivo final. É preciso ter bom senso e comprometimento com a profissão para não usar a ferramenta como forma de distorcer a verdade fotografada.
Quem nunca viu o Sarkozy mais magro, mísseis que nunca existiram, armas colocadas nas mãos de pessoas erradas, e infinitas mentiras fotográficas que tem o objetivo de enganar e manipular estrategicamente determinado assunto?
Sem falar do uso excessivo e desregulado das manipulações digitais como se fossem um produto de beleza. Ninguém mais pode ter uma gordurinha acolá, poros faciais, uma bochecha grande etc. Com o uso desnecessário do Photoshop começamos a aceitar que existe um ser humano perfeito e que todas as fotos das outras pessoas devem chegar nessa imagem inatingível de perfeição.
Felizmente estamos deixando de lado essa vontade de ser um padrão e finalmente o mercado está se policiando e fugindo das bizarrices e situações irreais. O foco é cada vez mais a beleza real, como nos questionamentos levantados pelas campanhas de Dove nos últimos anos. As pessoas perceberam que devem dar mais atenção para esse tipo de abordagem e questionar de onde veio determinada imagem, se houve ou não uma manipulação milagrosa e exagerada.
Em meio as discussões do bom senso no uso do Photoshop, sempre fica a dúvida se muitas vezes uma imagem que não quebra os conceitos éticos e continua sendo única, teve uma base muito bem feita ou alcançou essa nível a partir de um bom profissional de tratamento.
O ovo ou a galinha?
Cássia Desbesel, designer e bicampeã do Photoshop Conference Brasil, acredita que o fotógrafo continua sendo o dono do “momento”.
“Se não for ele para captar aquele olhar ou aproveitar aquela luz natural o trabalho pode ser comprometido. Eu costumo dizer, que o tratamento corrige qualquer coisa, mas não tem nada mais convincente do que um momento original, e este, só o fotógrafo pode conseguir” – Cássia Desbesel
Para Kaue, pensar se o trabalho de um fotógrafo é melhor que de um profissional de tratamento é o mesmo que questionar se o que veio primeiro foi o ovo ou a galinha. “Os dois interagem e um depende do outro. Sem um bom fotógrafo não existe uma boa fotografia tal como sem um bom tratamento ela também não existe. Acho que hoje o principal papel do fotógrafo é orquestrar a confecção de uma imagem, dar a matéria prima, o tom e a composição”.
É verdade que a tecnologia está se sobressaindo à antiga forma de se conceber a fotografia. Algumas técnicas acompanharam o desenvolvimento da mídia e conduziram os fotógrafos a renovações de linguagens, já o Photoshop prevalece como a da nossa época. Mas ainda é imprescindível a união das técnicas de aprimoramento digital com o olhar do fotógrafo para dar qualidade a foto final. E mais que isso, é importantíssimo que os dois pensem em conjunto sobre a ética do que estão fazendo para elaborar um trabalho de sucesso.
Diante disso, o que vai destacar certa imagem ou trabalho perante há tantos outros que se utilizaram dessa facilidade tecnologia das manipulações rápidas e acessíveis vai ser a novidade, a criatividade e o pensamento dos profissionais em conjunto para completar um o trabalho do outro.
Renato braga lembra “nessa perspectiva da excelência da imagem, a relevância de uma produção cada vez mais deixa de ser a “bela foto” em si, para encontrar seu valor numa discussão de linguagem. Ou seja, o que fará um bom criador de imagens não é a câmera nem o computador, mas sim sua visão singular de mundo e sua contribuição para uma discussão mais ampla, no campo simbólico e sensível”.
*A série Fantasia de compensação foi realizada utilizando procedimentos que mesclam produção plástica e manipulação digital não causando sofrimento e morte ao animal. O texto Dos bastidores de um auto-retrato esclarece o processo de realização da obra.