“Malévola” e a guerra aos arquétipos

“Malévola” e a guerra aos arquétipos

Disney reimagina sua clássica vilã e redefine estereótipos

por Fábio M. Barreto
Malévola

Mudanças de paradigma fazem parte da evolução humana. Seja na sociedade, na política ou nas corporações, elas acontecem de acordo com estímulos externos. Um dos maiores casos recentes é a Disney.

Depois de décadas definindo os sonhos de meninas ao redor do mundo, a companhia percebeu que aquela definição clássica de amor verdadeiro e irrevogável começou a cair por terra por conta dos desenvolvimentos sociais e, para manter a liderança no campo, organizou mudanças.

Se analisarmos os últimos dez filmes de sucesso da Disney e estrelados por garotas, animados ou não, um tema se revela: o rito de passagem agora é feminino e as meninas se transformam em mulheres poderosas nas telas. Mulan, Alice, Rapunzel e Elsa agora ganham uma nova, e definitiva, aliada nessa empreitada: Malévola.

Com a estreia de “Malévola” (Maleficent), a Disney completa a transição da princesa à espera do príncipe encantado para a mulher que não pensa duas vezes em defender seus objetivos. “Frozen – Uma Aventura Congelante” já deixava claro esse direcionamento ao ignorar o formato do “amor romântico como solução” para o grande problema e terminar com Elsa independente e solteira.

Malévola

Malévola

Novamente sob a pena de Linda Woolverton (“O Rei Leão”, “A Bela e a Fera”), que também escreveu a nova versão de “Alice no País das Maravilhas”, a história da Bela Adormecida é recontada, ampliada e reinventada. Muito disso surgiu do comando de John Lasseter, que decretou a “Era da Reimaginação” dos clássicos logo que assumiu o controle criativo da Disney. Entretanto, Malévola vai além das predecessoras ao redefinir o conceito de “amor verdadeiro”. Os estereótipos caíram, agora é a vez da mistura entre individualidade e relações construídas à base de experiências reais.

A história aceita a magia como fator cotidiano no universo da princesa Aurora e faz bom uso de seus elementos e efeitos em todos à sua volta, embora isso seja apenas o pano de fundo. De forma simples, “Malévola” trata de amor. Tanto da ausência quanto da abundância, e as consequências de ambos.

No meio de tudo isso está Angelina Jolie, num visual deslumbrante e em atuação certeira. Ela garantiu a força nos dois momentos mais definitivos da personagem ao longo do filme e permitiu que o conto infantil fosse muito além da esfera infantil e tivesse ramificações para parcela adulta da plateia. Tudo gira em torno de Jolie e de sua personagem, que se divide entre vilã e heroína em diversos momentos da trama.

Toda essa redefinição do amor é feita em estágios: paixão, envolvimento, confiança, traição, redescoberta. E não faltam camadas de entendimento no roteiro, que não foge a grandes aflições das mulheres, como, por exemplo, o estupro. Numa das cenas mais pesadas da trama, algo é tomado de forma violenta e definitiva.

Elle Fanning e o diretor Robert Stromberg

Elle Fanning e o diretor Robert Stromberg

Malévola

A dor da traição se mistura ao trauma físico e suas sequelas, que são carregadas ao longo da trama. Talvez, essa sequência se torne tão emblemática no universo Disney quanto a morte da mãe de Bambi tamanha é sua relevância social e inserção num conto acessível a milhares de crianças.

Se a dor gera muita coisa, a descoberta da própria identidade contrapõe a história e catapulta grandes reviravoltas dramáticas, ações grandiosas e escolhas capazes de inspirar gerações. Claro, o conceito primário é simples e até didático, mas vai além disso.

Acompanhar a trajetória de Malévola é observar os altos e baixos da vida de muitas garotas vítimas de abuso ou abandono; assim como daquelas que, mesmo não afetadas fisicamente, precisam enfrentar suas próprias jornadas transformadoras em busca de liberdade, respeito e independência.

Longe do discurso feminista radical, é preciso reconhecer essas mazelas atuais e, da maneira que for possível, mostrar o caminho. Filmes como “Malévola” fazem isso e tem seu valor. Escapar das imposições é possível? Claro, mas, assim como qualquer pessoa disposta a escapar de injustiças sociais, há sempre um preço a ser pago.

“Malévola” pode ter declarado guerra à opressão, mas a Disney e tantos outros, declararam guerra aos arquétipos clássicos

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Os dois lados de “Malévola” pagam caro pelos erros. Um é amaldiçoado pela loucura e paranoia; o outro pela obstinação sombria. Em boa parte do tempo, fica claro se tratar de uma batalha sem vencedores ou benefícios. Até o momento da escolha, quando um catalisador-chave é colocado em jogo e cada um dos lados precisa reagir a ele. Eis que a verdadeira índole de cada um surge e a bondade vence, afinal, ainda estamos falando de um filme da Disney.

Inegável não atribuir a essa “reimaginação” de “A Bela Adormecida” raízes fortes em Wicked, que transformou a percepção sobre a Bruxa Má do Leste, de “O Mágico de Oz” e se tornou um dos musicais mais assistidos da Broadway. Esse movimento quebra um pouco a dicotomia dos clássicos situados na Europa Medieval e lhes insere nesse mundo cinza e cheio de leituras alternativas do qual a literatura moderna, especialmente, se alimenta.

Malévola pode ter declarado guerra à opressão, mas a Disney e tantos outros, declararam guerra aos arquétipos clássicos. John Campbell os define como fundamentais para qualquer civilização. Quem estará certo?

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Fábio M. Barreto é cineasta, autor de “Filhos do Fim do Mundo” e produz o canal “Barreto Unlimited”, no YouTube.

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