Estamos trabalhando cada vez menos, mas pelos motivos errados
O que o trabalho que estamos colocando na rua tem a ver com isso
Dia desses, não faz muito tempo, vi uma foto de quatro criancinhas no meio de uma carvoaria, imagino, no início do século passado. Estavam lá, cobertas de fuligem, tristes, com aquele olhar de nasci-pra-isso-mesmo-? As leis de proteção ao trabalhador e à infância, o conceito inovador de folga no fim de semana e a ideia de carga horária de oito horas diárias ainda não tinham sido implementados. Mais ou menos como no departamento de criação nas agências brasileira nos anos 1990.
Tudo bem que eu exagerei na analogia, mas o fato é que se trabalhava demais, 12, 14, 20 horas por dia, virava-se noite, acabava-se casamento. Era um tempo em que não bastava se esfolar na frente de um computador, era preciso ostentar o esfolamento. Se o Instagram existisse, seria um festival de zumbis fazendo selfies.
Hoje, vinte e poucos anos depois, o cenário é diferente. Ainda se pega no pesado, claro, e estamos longe de praticar horários de funcionários públicos, mas foi-se o tempo em que as pessoas cultivavam olheiras e gastrites com orgulho. Hoje pega mal. É cafona. Outro dia, num sábado a tarde, falei que estava indo trabalhar e uma amiga, redatora e gata (era gata mesmo, mas nem sei porque estou contando isso), enfim, essa amiga redatora gata me olhou com asco, como se eu tivesse colocado pra tocar um CD do Kenny G e dito “adoro Jazz”.
Não é preciso ser matemático para deduzir que não valia a pena tantas horas refazendo trabalhos que teriam que ser refeitos outra vez.
Não duvide quando digo que essa redução de carga horária é uma vitória da nossa categoria. Mas seria uma vitória mais consagradora se fosse pelos motivos corretos, porque conseguimos estabelecer processos de trabalhos mais saudáveis, porque nos posicionamos de forma mais assertiva em relacão aos nossos clientes e suas solicitações esdrúxulas, porque etc e tal.
Reduzimos o ritmo porque o custo-benefício tinha muito mais custo do que benefício, era um oceano de pain para uma Cantareira de gain. E, assim, um movimento nem sempre consciente libertou uma geração para encarar o trabalho na criacão de uma agência de propaganda de outra forma. Não nos esqueçamos que houve no começo do milênio uma ótima contribuição do pessoal do digital que ignorou completamente as normas vigentes chegando na agência às 10h e saindo cedinho, tipo, às 21h.
– “Saca só os modernetes…”
– “Cadê?”
– “Já foram embora…”
– “Não querem ovo! Que é que esses putos fazem uma hora dessas fora da agência?
– “Sei não… De repente até transam.”
– “Credo!”
Os novos profissionais formados pelas escolas de propaganda, pelos cursos de criação também chegaram e chegam com uma outra pegada. O motivo eu francamente não sei. Talvez tenhamos que convidar a Marilena Chauí pra falar sobre esse fenômeno, ou algum geneticista: são quase outra espécie.
No entanto, nada, nada – e quando eu digo “nada” eu quero dizer “nada” mesmo – nada mudou mais o cenário insalubre do que os comerciais que a gente coloca na rua. É quando o custo de trabalho, horas mal dormidas, má alimentacão, namoros desfeitos e brochadas frequentes não valem o benefício de um comercial com o Luciano Huck iluminando o mundo com aquele sorriso de ilustração mal acabada.
Antigamente, campanhas eram aprovadas na base do telefonema, eram apresentadas diretamente aos presidentes das empresas. As taxas elevadas de triglicérides eram compensadas com ótimas peças nas ruas, com trabalhos memoráveis, com comerciais comentados nas festas em família – e olha que estamos falando de uma ideia bem particular de compensação. Ainda assim era nítida a relação causa-consequência.
Bons comerciais são cada vez mais raros. Os prazos são exíguos, as ideias atravessam níveis e níveis de aprovação até serem consideradas aptas a não comover o consumidor, departamentos de marketing estabelecem métricas, padrões, procedimentos que melhoraram pra pior todo o processo a tal ponto que qualquer esforço em busca do excelente, do novo, do ótimo e do relevante seja… irrelevante.
Não é preciso ser matemático para deduzir que não valia a pena tantas horas refazendo trabalhos que teriam que ser refeitos outra vez. Diretores de Criação que brilharam como redatores e diretores de arte anos atrás não tinham mais cara (alguns ainda tem) de chegar com mais uma reprovacão da reunião e ainda pedir para dar mais um gás até amanhã de manhã porque “se não ficar tão ruim dá até pra gente divulgar no site Clube”. E criativos perdiam completamente o respeito e a confiança em diretores de Criação que os estupravam diariamente sem nenhuma palavra de carinho, um cafuné que fosse.
A situação toda seria triste, se não fosse boa.
Porque horários decentes de trabalho não são apenas fortes indicativos de civilidade em uma sociedade, como as crianças cheias de fuligem na foto no começo do texto não nos deixam esquecer, ou de maturidade de uma classe trabalhadora específica. É também um jeito de cuidar da maior riqueza que uma agência de propaganda tem: seus empregados. E precisaremos de gente bem disposta, bem alimentada, saudável, tinindo e trincando pra trabalhar. Porque o que tem de comercial ruim na rua, meu amigo…