“John Wick”: Keanu Reeves parte da simplicidade para a grandiosidade
Os diretores Chad Stahelski e David Leitch rejeitam as convenções de Hollywood parar criar ação objetiva e inspirada
[AVISO: Contém spoilers menores]
Logo nos minutos iniciais de “De Volta ao Jogo”, são apresentados em sequência os elementos que se repetirão ao longo de toda a projeção. Por cima de uma tela preta, a voz de um locutor de rádio anuncia o fim da temporada de chuvas em Nova York.
Uma imagem surge na tela: um carro segue debaixo de uma tempestade em direção a uma parede de concreto, tendo como motorista John Wick, quase inconsciente e gravemente baleado no torso. A seguir, uma montagem paralela, iniciada pelo som de um alarme, revela um pouco sobre o personagem: ele perdeu a esposa (dona de um enterro chuvoso) para uma doença, mas dela recebeu uma carta de despedida agendada e um filhote de cachorro, que deveria acompanhá-lo como o primeiro passo para que superar a solidão.
O processo de síntese inicial é direto e constrói as bases do longa com eficácia e simplicidade. Já a partir deste momento, o filme e seus diretores, Chad Stahelski e David Leitch, parecem de modo consciente evitar a tendência da ação hollywoodiana de recorrer a frases e ações iniciais, sobretudo através da repetição, com o intuito de moldar seus personagens, conferir a eles “profundidade” e “dimensionalidade” e fazer com que percorram certo arco narrativo.
“John Wick” parece, de modo consciente, evitar a tendência de moldar seus personagens com ação hollywoodiana
Aqui, a repetição é usada com semelhante insistência – o alarme, o toque de celular, até mesmo o choro canino -, mas cumpre função distinta, servindo apenas para colocar o personagem em movimento, não necessariamente em direção ao seu desenvolvimento e à mudança. Mesmo ao fim do primeiro arco, quando John entra em sua corrida por vingança, diversas lacunas são deixadas, e não cabe ao espectador e nem mesmo à narrativa preenchê-las.
É aberta, assim, a possibilidade de o filme se dedicar a arranjar os tais elementos primordiais com maior paciência – em certa medida, é como se ele pertencesse essencialmente a Hollywood, mas rejeitasse com elegância suas restrições e optasse por outra abordagem, em que poucas e óbvias trocas de falas e a repetição dos já citados traços não passam de rimas (sonoras e visuais) que, felizmente, não assumem qualquer papel expositivo ou de propulsor da trama. Exceção feita ao uso da palavra “cocksucker” quando Ian McShane (de “Deadwood”, série que utiliza o termo com frequência) entra em cena, as frases de efeito de John Wick e demais figuras existem por si mesmas e são fortes por serem auto-suficientes em sua hora e meia de duração.
Em um plano maior, porém, o arsenal de influências do projeto é bem claro. Não se trata aqui de se associar a um grupo de cineastas que transforma todo e qualquer plano em uma referência obrigatória, uma piscadela mais ou menos sutil para a audiência aficionada, mas de pegar emprestadas de seus “ascendentes” determinadas características. A coreografia das sequências de luta corporal é bastante eficiente e invade também a ação com armas, como se tiros fossem disparados no mesmo ritmo com que socos são trocados.
Os planos são relativamente abertos, mas – talvez graças à sua longa duração – não deixam de percorrer o cenário e oferecer detalhes precisos da ação: as balas disparadas têm, todas elas, destinos específicos (geralmente a cabeça), a execução dos golpes é extremamente metódica, e a condução dos embates é sempre pontuada por exclamações de dor e pelo som do contato físico entre os envolvidos.
A presença de Keanu Reeves em tela é fundamental, com sua persona silenciosa e violenta
Nesse sentido, a presença de Keanu Reeves em tela é fundamental. Notada em trabalhos recentes como “47 Ronin” e, principalmente, “Man of Tai Chi”, sua persona silenciosa e violenta, escondida sob a figura de um homem comum (cujo nome é também banal), reforça esses contornos em “De Volta ao Jogo”. Sua habilidade para o combate é intensificada pelo uso da câmera, que arquiteta com qualidade um legítimo filme de gênero que mais media e absorve arquétipos e influências do que propriamente os ressignifica.
Somam-se ao conjunto sequências muitíssimo bem filmadas, tais como a curiosa e frenética corrida na pista de dança (vale notar o painel psicodélico atrás de John e os movimentos de seu rival, que se desvia no ritmo da trilha), o disparo feito do capô do carro contra o motorista/capanga de Viggo (Michael Nyqvist) e a perseguição automobilística final, quando os veículos parecem assumir uma coreografia particular, mas que remete aos estilos de seus pilotos.
A sensibilidade de Stahelski e Leitch dentro da mitologia do gênero surge ainda nas breves participações de Lance Reddick e Clarke Peters, ambos parte do elenco policial de “The Wire”. É interessante notar que suas aparições, respectivamente, como o gerente do hotel e um antigo colega do protagonista, acontecem no trecho em que o filme adquire características evidentes de conspiração organizacional, mais do que de pura trama de vingança.
Há, porém, momentos em que a busca por energia desloca o foco desnecessariamente, abandonando o que interessa em prol de mais movimento: é o caso da alternância entre o posicionamento do protagonista como atirador no alto de um prédio e a tela do videogame de seu alvo, um jogo de tiro em primeira pessoa.
O principal mérito do filme é erguer-se na simplicidade e caminhar de forma objetiva e inspirada para alcançar sua própria grandiosidade
O desfecho, porém, recupera o eixo e situa a batalha derradeira do mesmo modo que as típicas produções de artes marciais. O duelo ocorre numa arena neutra tanto para herói quanto para seu principal inimigo (novamente sob forte chuva), colocando frente a frente estilos diferentes (“chega de armas, chega de balas, só eu e você”) e trazendo a deslealdade de Viggo contra o judô de John. Mais que isso, rivalizam discursos opostos que partem de um mesmo senso de vingança.
O vilão justifica a morte numa ideia de destino irreversível segundo a qual a morte da mulher do adversário havia sido uma “obra de Deus” que o fez despertar como um animal, enquanto Wick se apresenta como alguém que teve arrancados a um só tempo “um vislumbre de esperança e a oportunidade de não passar pelo luto sozinho”.
O enfrentamento, que tem como semente a morte de um cachorro, é símbolo do principal mérito do filme: erguer-se na simplicidade e caminhar de forma objetiva, inspirada mesmo (e talvez porque) sem maiores arroubos narrativos, para alcançar sua própria grandiosidade.