“Whiplash”: Uma bem-sucedida busca pela catarse

“Whiplash”: Uma bem-sucedida busca pela catarse

O diretor Damien Chazalle extrai sangue, suor e lágrimas. Tanto de seus personagens como do espectador.

por Virgílio Souza
Whiplash

[AVISO: Contém spoilers menores]

“Whiplash”, a história de um garoto obcecado por se tornar um grande baterista, é arquitetado sobre uma base bastante sólida: a construção do próprio clímax. Embora haja momentos em que pareça preferir se atrasar a se adiantar (em termos de ritmo e velocidade, para aqui utilizar a terminologia típica de seu universo), todo o filme se dedica à construção do êxtase final e obtém sucesso nessa empreitada.

A busca incessante por esse arco crescente é visível desde a sequência inicial, que segue o som da bateria do protagonista por cima da tela preta. Naquele momento, a câmera parte da observação distante de Andrew (Milles Teller) cercado por seu instrumento musical em direção ao garoto enquanto a canção se intensifica, para se acomodar já próxima dele, centrada em sua expressão. A sugestão é de que até mesmo a ideia de movimento do longa incorpore essa extenuante crescente (da trama e de suas faixas individuais), trazendo sua reação, seja ela positiva ou negativa, a um só tempo como causa e consequência desse norteamento pelo gran finale.

Embora haja momentos em que pareça preferir se atrasar a se adiantar, todo o filme se dedica à construção do êxtase final e obtém sucesso nessa empreitada

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É a partir desse projeto de catarse que a narrativa permite que se construa um par de personagens tão interessante. O baterista é arrogante, despreza outros interesses, amizades e seu relacionamento com Nicole (Melissa Benoist) a favor de uma possibilidade de carreira, ciente de ter dado apenas seu primeiro passo ao entrar para a banda do Conservatório Schaffer, mas obstinado pela perfeição no que gosta de fazer.

O regente e professor Terence Fletcher (J.K. Simmons, vencedor do Globo de Ouro 2015 pelo papel), com quem o aluno entra em constante conflito por sua postura militaresca, que seguidas vezes remete com clareza a figuras como o Sargento Hartman de “Nascido para Matar”, possui distintos desvios de caráter, da misoginia à homofobia. Ele, porém, parece ser outra face da mesma moeda, fruto de uma fixação similar pelo sucesso, que aqui é mais não-fracasso do que qualquer outra coisa – basta reparar como se refere à frustração do pai de Andrew, que desejava ser escritor mas se tornou apenas um professor de Ensino Médio

O diretor Damien Chazelle

O diretor Damien Chazelle

Whiplash

Submerso desde o primeiro instante nessa descarga emocional bastante trágica e um tanto próxima de um discurso aberto de seus personagens contra a resignação (afinal, “Não há duas palavras na língua inglesa mais prejudiciais do que ‘bom trabalho’), o filme constrói seus personagens como abusivos, conscientemente ignorantes de qualquer limite moral, ético e talvez até físico – não é exagero afirmar que “Whiplash” é repleto de sangue, suor e lágrimas.

Até mesmo os momentos em que provoca uma certa empatia pela dupla são absolutamente cínicos, articulados em direção ao êxtase, prestes a serem subvertidos pela velha ferocidade. São sinais disso tanto os breves sorrisos de Andrew quando acerta as notas, imediatamente substituídos pela decepção com os seguidos ataques de seu professor, e ainda a sequência em que Fletcher se emociona pela morte de um ex-aluno para a seguir humilhar os atuais.

A violência que permeia o longa pode também ser percebida pela forma como o protagonista é filmado ao sair de seu mais cansativo ensaio: em câmera lenta, entre luz e sombra, cambaleante, tal qual um pugilista que venceu um embate por pontos após mais de uma dezena de rounds.

Ao se fixar tanto na estruturação do próprio clímax, no entanto, o filme revela fraquezas pontuais. O diretor Damien Chazalle, em seu segundo longa, mostra competência na condução da trama, mas adota soluções fáceis e esquemáticas ao longo do percurso. Há alguma infantilidade, um deslumbramento, na forma como o filme se prendem às figuras do ídolo, do mestre e do prodígio, tendo como possíveis sintomas inclusive a maneira como as trabalha visualmente.

Não é exagero afirmar que “Whiplash” é repleto de sangue, suor e lágrimas

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A presença errante da figura paterna (marcada pelo embate na mesa de jantar, arena da incompreensão da família pela paixão do rapaz) e o processo de aprendizado pelo qual Andrew passa (sentado no chão de pernas cruzadas ouvindo os grandes ícones da bateria em um pequeno aparelho de som) possuem utilidade como catalisadores da trama, mas carregam um ar de inocência que contrasta com a aparente maturidade dos pontos fortes do trabalho. Nesse sentido, muito embora seja composto de sequências memoráveis, o filme, em sua preocupação excessiva com o todo, deixa à mostra algumas (poucas) partes que, destacadas, se mostram pálidas.

O mesmo pode ser dito sobre o modo como ele é montado: os cortes são em sua maioria óbvios, seguindo apenas as deixas sonoras, sem que a transição visual produza significado ou demonstre maior apreço estético. Há exceções, evidentemente, para as duas questões: quando se vale do silêncio e nos trechos em que o som é acompanhado por ações não musicais.

Aliada à composição meticulosa do último segmento, a energia do jazz que ocupa os minutos finais de projeção é assustadora e capaz de produzir efeitos catárticos

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Exemplos interessantíssimos são o ponto em que a faixa de áudio apresentada por Fletcher à banda acaba, deixando-o completamente exposto, e aquele em que a mão do garoto sangra e o corte nos leva à tosse de Nicole, talvez um indício precoce de que a dedicação dele causará incômodo nela.

Ressalvas à parte, é fascinante que “Whiplash” saiba construir seu terceiro ato com tanta habilidade. Se por um instante parece fraquejar, curiosamente pelo excesso de intensidade com que se estrutura, o filme logo se recolhe e abaixa o tom para retomar o volume na sequência derradeira, não apenas muitíssimo bem filmada, mas também extremamente impactante.

Aliada à composição meticulosa daquele último segmento, a energia do jazz que ocupa os minutos finais de projeção é, no melhor sentido possível, assustadora capaz de produzir efeitos catárticos. Se era essa a intenção de Chazalle desde o princípio – como, dadas todas as evidências, parece ter sido -, é difícil não reconhecer seu imenso sucesso.

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