- Social Media 18.Maio.2015
Hegel e a dialética do Facebook
As redes sociais e as formas de escravidão virtual
Diz-se que a filosofia ocidental é apenas uma grande nota de rodapé da obra de Platão. Se isso for verdade, Hegel escreveu algumas das notas de rodapé mais influentes. No colossal projeto que cria a rede de influência de um pensador sobre outro ao longo da história da filosofia mundial, Hegel aparece como um ponto de convergência maior e mais pulsante que Platão (talvez ele perca apenas para Nietzsche ou Marx). Ou seja, se a filosofia mundial fosse o Facebook, Hegel seria popular pra caralho.
Hegel não é fácil de ler, mas acabamos travando contato com suas teorias através dos livros de outros autores. Sartre, Camus, Honneth, Marx, Lacan, Weber, Freud, são alguns dos autores que se inspiraram na dialética de Hegel. Há mais de Hegel na literatura e na cultura atual do que se pensa, inclusive na nossa relação de uso com a Internet.
O Paradoxo do Senhor e do Escravo 2.0
Hegel ficou célebre pelo livro “A Fenomenologia do Espírito”, especialmente pela parábola do Senhor e do Escravo, que em linhas bem gerais é:
No mundo das redes sociais somos o Senhor que dita o que a máquina vai fazer ou o Escravo que faz o que a máquina mandar?
• O Senhor obriga o escravo a fazer o que ele quer, enquanto ele, o Senhor, vive a boa vida. O senhor não planta, limpa ou pega pesado, ou seja, ele não conhece mais os mecanismos do mundo real, uma vez que interpôs um Escravo entre ele e o mundo. O Senhor é livre porque manda no Escravo, mas é ele quem depende do Escravo para tudo, ou seja, o Senhor é, dialeticamente, escravo do Escravo.
• Por sua vez a dependência do Escravo com o Senhor gera, no Escravo, uma espécie de liberdade. É por medo de sofrer que o Escravo não se rebela, mas o Escravo não percebe que sua vida já é puro sofrimento. Diante de duas vias sem saída (rebelar-se e morrer e submeter-se e sofrer) o Escravo encontra uma nova forma de liberdade, desenvolvendo uma nova consciência pessoal. Trabalhando para o Senhor o Escravo se sente parte de um sistema, portanto, livre.
• Ou seja, tanto o Escravo quanto o Senhor existem dentro da mesma dialética, um depende do outro, um não existe sem o outro.
Claro, esta é uma visão simplista das coisas. Mas se substituirmos os termos adotando a dialética pura e simples, que postura assumimos hoje diante do mundo? Afinal, quem manda em nós? Do que ou de quem somos escravos? Da mídia? Do sexo? Do vício? Da Internet? No mundo das redes sociais somos o Senhor que dita o que a máquina vai fazer ou o Escravo que faz o que a máquina mandar? É aí que eu quero chegar.
O canibalismo virtual/social: comemos o que criamos e viramos comida para os outros
Acredite: a Internet vende quando dá. Nada na web é de graça. Nada. Neste exato momento, enquanto você lê este texto, alguém (não eu) está ganhando dinheiro às suas custas. E isso é ruim? Genericamente não, afinal, alguém precisa receber por manter a Internet fluindo de um lado a outro. O problema é quando usuário “trabalha” para o sistema sem saber, ou se torna em matéria prima para o lucro de outras pessoas.
A sua atenção e a minha dedicação (mesmo que falha) em criar esta pequena coleção de caracteres é a célula que sustenta a “liberdade” e “gratuitidade” dos serviços sociais da Internet
Uma rede social é, por simples dizer, uma conexão feita entre pessoas reais em torno de uma “sociedade” virtual. Há, nesta cópia da vida real, uma sensação de liberdade e de domínio da vida que não existe no mundo concreto. Mais do que liberdade, há a noção de pertencimento. Enquanto escrevo esse texto, tenho a crença de que ele é algo meu dentro do Medium – onde foi publicado originalmente – quando na verdade o meu trabalho é parte do patrimônio do Medium. Estou dedicando algumas horas da minha vida para manter algum nerd do Vale do Silício confortável em seu apartamento ao lado de uma lareira tomando um bom vinho. Estou trabalhando para a rede gratuitamente e feliz.
Posso crer que sim, o Medium de alguma forma me recompensa pelo meu trabalho, me oferecendo um o ambiente onde eu possa me expressar e entrar em contato com você, o leitor. Eu escrevo, você lê, eis o meu pagamento. Mas esta forma de “pagamento” não é entre eu e o Medium, é entre eu e você. Quem me paga por escrever para o Medium não é o Medium, é você. E quem paga para você perder o seu tempo lendo o meu texto sou eu. A sua atenção e a minha dedicação (mesmo que falha) em criar esta pequena coleção de caracteres é a célula que sustenta a “liberdade” e “gratuitidade” dos serviços sociais da Internet.
a) que cada um apareça na consciência do outro como tal, o que o exclui toda a extensão de sua singularidade; e
b) que, nesse seu excluir, ele seja realmente totalidade…”
— Georg Wilhelm Friedrich Hegel. A terceira potência da posse e da família. 1803/1804
O que me prende a uma rede social? Basicamente o reconhecimento. Você se loga para saber que é você mesmo.
Estou citando o exemplo do Medium pois estou agora aqui, dentro dele, mas em redes sociais onde o contato usuário/usuário é mais intenso o “pagamento” pelo “trabalho” se dá sempre entre os que usam a rede e de modo cada vez mais controlado. Algoritmos selecionam a notícia que iremos ver de acordo com o nosso humor ou partido político, amigos são sugeridos de acordo com o nosso afeto ou inveja. É um moto-contínuo de autofagia de conteúdo onde:
• o utilizador produz o conteúdo,
• é pago pelo que produz com o que ele mesmo produziu (tirei uma foto, sou pago pela sensação de que aquela foto dentro do Instagram vale mais do que dentro do meu celular, ou em outra rede qualquer),
• com isso o usuário atrai outros utilizadores para manter o ciclo ativo, afinal, quanto mais gente tiver dentro da rede, maior é o seu pagamento.
• É um caso raro, quem sabe único, onde o escravizado se auto-escraviza e ajuda a escravizar outros.
Ou seja, não apenas trabalhamos de graça para a Internet como somos enganados por ela pensando criar algo próprio, iludidos pela novidade, quando na verdade estamos comendo o próprio figado. Damos a ela informações preciosas sobre nossa vida íntima. Confiamos às redes nossos gostos, desejos, fantasias sexuais, perversões, ideologias. Nunca na história da humanidade um único veículo deteve e controlou tanta informação privada.
Os defensores do sistema de recompensas da Internet afirmam que cada um se torna eternamente responsável pelos botões que clica. Ninguém é obrigado a abrir um perfil numa rede social, nem a ficar horas vendo fotos de gatinhos. E se eu não sou obrigado a ter um perfil social (e muitas pessoas vitoriosas não tem), como pode haver algum tipo de escravidão virtual? Que tipo de punição existe da rede contra o usuário? O que me prende a uma rede social? Basicamente o reconhecimento. Você se loga para saber que é você mesmo.
O click do amor
Estamos na Internet para nos ligarmos ao conceito hegeliano de “espírito do tempo”. Temos a impressão (não de todo errada) que o tempo e a história são representados pela Internet e não participar disso fere nossa humanidade. A rede social é a sala de estar do mundo. Nela sabemos do que precisamos e não precisamos saber e a punição por não participar é o medo de não ser reconhecido. E nada assusta mais as pessoas do que passar em branco.
Axel Honneth (um dos grandes nomes da Escola de Frankfurt) foi quem melhor explicou os conceitos de rede social quando o termo se referia apenas a uma rede pessoas “reais” interagindo no mundo “real”. Para Honneth, a vida social baseia-se no reconhecimento. Vivemos para ver, através dos nossos semelhantes, o nosso valor. Há muitas formas de ser “reconhecido” socialmente, mas quando falamos de Honneth três tipos são primordiais. O reconhecimento pelo amor, pelo direito e pela solidariedade. Não por acaso as redes sociais apoderaram-se destes três conceitos de modo quase imperialista.
O amor (e entendam amor no sentido de afeto) nos é dado pela sensação de amizade. 1500 amigos no Facebook (ou no Instagram, ou no Twitter, ou onde for) podem criar o sentimento de “amor” que os sociólogos esperavam, até pouco tempo atrás, que somente a vida social fosse capaz de oferecer. O amor da rede social é o amor que os outros podem ver. O amor da foto da comida, da festa, dos encontros. Passamos a viver a vida real apenas para alimentar a vida virtual. Viajamos, vamos ao cinema, lemos, tudo isso para criar um Eu ideal, culto, descolado, amado.
Cada curtida é uma gota de reconhecimento e de afeto, afinal, em algum lugar, alguém usou os músculos dos dedos para mover o cursor do mouse pela tela e dar um joinha pra você.
A outra forma honnethiana de reconhecimento é o reconhecimento de direito. Precisamos sentir que nossos direitos estão sendo respeitados, perante a Humanidade, o Estado ou Deus. A rede social plastificou isso com o “ativismo de sofá”. Claro, muitos movimentos de revolta social nasceram na internet, o Brasil tem exemplos recentes disso, mas quantos outros atos de revolta se resumem apenas a “xingar muito no Twitter”?
A solidariedade, a última forma de reconhecimento, é, dentro do ambiente da rede social, abordada de maneira ainda mais hipócrita e grotesca
Transferimos nossa revolta cotidiana para o mundo da rede. Lá nossas opiniões serão validadas, encontraremos outros revoltados como nós, não estaremos sozinhos dentro de nossa injustiça. Neste viés, uma empresa que não nos atendeu como deveria pode ser punida, um governo pode ser questionado com uma foto bacana e um BASTA em caps lock. Nosso sentimento de injustiça não serve mais para mover as coisas da vida real. É bom pra rede e bom para governos corruptos, afinal a plastificação da revolta ajuda a manter gente canalha no poder enquanto o cidadão médio escreve seu “textão do Facebook”.
A solidariedade, a última forma de reconhecimento, é, dentro do ambiente da rede social, abordada de maneira ainda mais hipócrita e grotesca. Compartilhar a desgraça, expressar apoio aos menos favorecidos, replicar ideais boa convivência (Gentileza Gera Gentileza), tudo isso prova para os outros que você é um ser humano bom. Se você é um filho da puta egoísta na vida real há grandes chances de ser um severo apoiador da filantropia virtual, uma filantropia que não doa um centavo sequer a ninguém que precise de fato. A dor do outro é avaliada pela quantidade de “curtidas”. A popularidade da dor pode aplacar a dor. A miséria compartilhada deixa de ser miséria, se torna menos chocante e mais distante. Incomoda menos saber que alguém sofre se o sofrimento é repaginado com uma bela mensagem de Clarice Lispector.
Manipulando as principais formas de reconhecimento a rede social é o Senhor que comanda seus Escravos com design e sofisticação. Redes sociais para amantes de vinhos, amantes de carros, amantes de cinema e para quem precisa achar um (uma) amante. Comemos, bebemos, trabalhamos, fodemos, tudo isso dentro de uma rede social. Os chicotes são sutis, porém precisos e severos. O Facebook vai engolindo outras redes, o Google se aglomera e se torna cada dia mais presente. Empresas de tecnologia ditam a moda, o pensamento, o ritmo da vida das pessoas. Quem diria há vinte anos atrás que haveria jornalismo especializado em notícias sobre… celulares?
O avanço tecnológico se resume ao avanço da capacidade de conexão com as redes sociais. Apoderada de todos os ramos da vida a rede abraçou a cultura, há agora a cultura geek, um ramo da cultura moderna que abre debates socráticos sobre a potência de uma placa de vídeo ou câmera de celular. O que é melhor, iOS ou Android? Aparelhos mais potentes, mais caros, que fazem basicamente a mesma coisa: manter você dentro da rede. E uma vez dentro da rede você é o Escravo que encontrou no trabalho o sentido da sua vida. Produzir conteúdo para as redes é agora o seu prazer. Você não vê mais as correntes. Não há rede sem usuário, não há senhor sem escravo.
Você é livre, a internet é sua, e você não é pau-mandado de ninguém.
—
Valter Nascimento é livreiro, escritor, estudante de relações internacionais. Texto publicado originalmente no Medium. Republicado com permissão do autor..
Os gifs são do artista Dax Norman