O racismo velado das agências de publicidade

O racismo velado das agências de publicidade

Nosso mercado “não tem envergadura moral” para criar campanhas para negros e pardos no Brasil

por Daniel Sollero

É chato mas uma hora teríamos que falar sobre isso. Você que está agora na sua agência, dê uma olhada nos departamentos de Criação, Planejamento, Atendimento e Mídia e me diga o percentual aproximado de negros ou mulatos pardos que tem por aí. Tem algum? Eu sempre brinquei nas agências que passei de que eu tinha entrado por cotas. Todos riam. Só que preferiam não entender o sarcasmo da minha afirmação. Quase não há negros nas agências de publicidade.

Antes de mais nada preciso dizer que sou contra cotas raciais no Brasil. Nosso povo é tão misturado, mas tão misturado que não tem tanta gente sem um descendente negro no país. (EDIT: Só acrescentando que é por conta da subjetividade da análise do “ser negro” do sistema de cotas. Como aconteceu em 2007 na UNB) Se querem colocar cotas em faculdades ou qualquer outro lugar, acho que seria mais legal que fosse cota por renda familiar. Aí sim seria realmente inclusivo e os brancos pobres também poderiam ter benefícios. Mas entendo que há uma culpa relacionada a toda a história escravocrata do nosso país e que fez com que algumas coisas se tornassem quase verdade para algumas pessoas. Uma delas é a que mulato pardo é igual a preto. Preto é igual a pobre. E pobre não tem educação. Isso é de uma cretinice, leviandade e de uma superficialidade tão grande que é inaceitável que um país tão misturado como o nosso acredite e pratique esse tipo de racismo “velado”.

Quer saber se você é racista e mesmo dizendo que não é? Imagine duas cenas:

Dê uma olhada nos departamentos de Criação, Planejamento, Atendimento e Mídia e conte quantos negros ou pardos você vê

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1. Homem negro de terno em um elevador com outras pessoas não-negras também de terno. Você acha que é o motorista/segurança ou que é um executivo como os outros? E se ele começar a falar fluentemente outro idioma, sua reação seria a igual se as outras pessoas no elevador fizessem o mesmo? Se você acha que é o segurança ou motorista e você não ficaria surpreso com os outros falando outro idioma, tenho uma coisa para te falar. Desculpa, cara, mas você é racista e parte do problema.

2) Vagão do metrô vazio (eu sei, isso não existe mas é um exemplo. Podia ser uma rua deserta), na estação seguinte entra um negro com a camisa do time mais popular da sua cidade. Na outra estação entra um não-negro com a camisa do mesmo time. Você se sentiu inseguro nas duas situações do mesmo jeito ou só quando o combo “negro+camisa do time popular” entrou no vagão? E se o não-negro entrasse primeiro, mudaria alguma coisa? Entende o que eu quero dizer? Se você se sente inseguro ao redor de negros, isso é racismo. E tem implicações no mercado de trabalho quando você vai contratar alguém para a sua equipe.

Não vou falar sobre campanhas sobre racismo, mas, historicamente, negros não são representados corretamente na publicidade. Um monte de gente já escreveu sobre isso. O Brasil é racista e o mercado é cruel. Branco é rico. Preto é pobre. E dane-se quem não seguir essa regra. Fácil simplificar assim, né? Mas isso pode ser apenas parte da verdade.

Quando alguém opta por não contratar o profissional negro (até mesmo quando este é mais qualificado), esse alguém ajuda a consolidar essa premissa de preto é pobre e sem educação.

Quando você diz que no final do processo seletivo é mais empatia com o candidato e você sempre contrata não-negros (ou porque eles não chegam até a fase final ou porque você escolhe os não-negros), você também ajuda a consolidar essa imagem. E isso não tem nada a ver com querer contratar por cotas ou qualquer coisa semelhante. Tem a ver com igualdade. Só isso.

Como criar campanhas que falem com negros sem ter negros entre os funcionários que efetivamente planejam, criam e executam as campanhas?

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Agora vá até o departamento financeiro, administrativo ou de limpeza da sua agência e tente ver o percentual de negros ou mulatos pardos. Esse percentual é maior ou menor que os departamentos de Criação, Planejamento, Atendimento e Mídia? Baseado em perguntas que fiz informalmente para várias pessoas nos últimos anos, o percentual de negros e mulatos pardos deve ser maior. Bem maior, alguns diriam. Mas o que isso diz a respeito das agências de publicidade no Brasil. Que são racistas? Talvez. Mas, fazendo piada com coisa séria, o que me diz é que as agências “não tem envergadura moral” para criar campanhas que falem com negros e mulatos pardos no Brasil simplesmente por não terem negros entre seus funcionários que efetivamente planejam, criam e executam as campanhas ou por não entenderem o que é ser negro nesse país.

Eu assino um serviço de revistas chamado Stack Magazines em que eles mandam uma revista diferente por mês. Um dia eu recebi a revista Hello Mr uma revista sobre “men who date men”. E o meu grande desafio ao ler a revista foi ter que fazer uma transposição para mulheres em qualquer texto que falasse de relacionamento. E conversando com meus amigos gays, notei que eles fazem isso toda hora ao ler revistas masculinas que tem matérias sobre relacionamento e etc e talvez nem notem mais. A chave vira sozinha. Mas uma coisa que eu mesmo não notei é que os negros também fazem isso ao consumirem boa parte do conteúdo que é produzido e publicado no país. E isso inclui a publicidade.

hellomr

Eu lembro até hoje quando lançaram a revista Raça (ou Raça Brasil). A primeira publicação brasileira focada em negros. Achei incrível. Parecia uma virada gigante no mercado editorial. E foi mas hoje ela é apenas mais um nicho. Quantas campanhas assumidamente para negros (que não seja do censo) você viu na TV aberta? Tenho a impressão de estarmos pregando aos convertidos. Lembro também quando começaram a aparecer mais negros na publicidade. Muitas vezes ainda eram retratados nos estereótipos padrão do samba, futebol, empregadas domésticas e mais tarde do preto descolado com cabelo diferente (geralmente dread ou black-power), quando falava com o público jovem e o do preto que quase chegou lá (o que isso quer dizer afinal?) usando camisa polo/social para alguma campanha de compra da casa própria em algum lugar da periferia das grandes cidades. Nunca era um negro comprando uma cobertura na região mais abastada. O que me lembra uma cena da série “Aquarius”, onde nos EUA racista dos anos 60 um cara paga famílias negras para andar em vizinhanças brancas para desvalorizar imóveis e ele, ao comprar os imóveis de quem quer sair daquela região, ter mais lucro na revenda.

Os poucos negros que chegam a entrar no mercado não são suficiente para mudar o cenário

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Mas o problema, infelizmente não é só da publicidade. Notei que muitas escolas particulares não tem professores negros. Sério. Pegue as melhores escolas particulares e veja quantas têm professores negros para crianças. É raro aparecer um. Se as escolas não estão pensando nisso, elas são parte do problema também. Se todas as referências de negros e mulatos pardos que as crianças têm em escolas particulares são de segurança, serventes, porteiros e etc, como esperamos que eles entendam que todos são iguais, que cor de pele não dita profissão e que todo mundo pode ser o que quiser.?

Eu assisti um documentário super bem feito chamado “White Wash” em que o diretor queria entender porque não existiam (ou existem poucos) surfistas e até nadadores americanos negros. Ele excluía os havaianos dos surfistas negros e a história é surpreendente e tem origem nos navios negreiros que vinham da África. Vale muito assistir esse filme porque mal ou bem é o que está sendo feito na publicidade no Brasil. Os poucos que chegam a entrar no mercado não são suficiente para mudar o cenário.

[youtube http://www.youtube.com/watch?v=n3cMh_EuBMs&w=560&h=315]

Durante a minha adolescência inteira eu raspei a cabeça com maquina 1 ou 2. Meu cabelo não é muito crespo e eu raspava a cabeça direto. Só fui deixar meu cabelo crescer e ficar meio Afro com uns 28 anos e quando as pessoas falavam algo eu dizia que era do filme “Cidade de Deus”. Era mais fácil fazer piada do que tentar explicar algo que nem eu sabia o motivo. Mas o curioso é que isso foi libertador. O fato de eu deixar o cabelo grande e não ligar para as piadas me fez ficar mais confiante em relação a minha aparência.

Eu sou mulato pardo e me considero preto. Eu era o único (ou um dos únicos) pardo/negro de vários dos grupos de amigos que passei. Na escola, na faculdade, nas bandas que toquei, eu sempre era o diferente.

Eu tinha a típica vida de um morador da zona sul carioca mas eu era pardo, tratado como negro, moreninho (sabe quando passam a mão no braço para te descrever?) e que tive a sorte de ter pais que puderam bancar essa vida para mim.


Praticamente tudo que meus amigos tiveram, eu tive também. Estudei em escolas particulares e cursei faculdade particular, fiz intercâmbio e por aí vai. Uma vida privilegiada que também tinha racismo.

Mãe branca, professora universitária (para mim sempre uma fodona da psicologia) e pai mulato pardo/negro administrador e empreendedor nato (tão foda quanto ela). Ambos cursaram faculdade, pós-graduação, Mestrado e etc. Raça nunca foi algo que fosse levado em conta lá em casa mas lembro de poucos amigos e amigas negros/mulatos pardos onde estudei. Eu só fui notar que eu era “diferente” dos meus amigos mais tarde quando começaram as típicas brincadeiras na adolescência. Embora eu me vestisse como meus amigos, frequentasse os mesmos locais, pagasse tudo igual a todos, sempre houve uma ou outra “brincadeira” de teor racista. Sobre o cabelo “ruim” que não mexe, sobre fazer “coisa de preto” e por aí vai.

Meu filho é mulato pardo como eu, com cabelo castanho como o da mãe e cacheado. Aos cinco anos ele foi exposto às primeiras situações de racismo por ser o mulato pardo no meio da tal elite branca paulistana. Hoje aos sete ele deixa o cabelo crescer e fala que o cabelo é a marca registrada dele. Ele diz que quer ser publicitário quando crescer. Talvez essa próxima geração consiga fazer o que a minha não conseguiu: mudar a maneira como os negros e mulatos pardos são retratados, contratados e respeitados no país mais miscigenado do mundo.

Em tempo: leia essa matéria da Galileu: Você é racista – só não sabe disso ainda. Talvez você entenda melhor o que acontece no dia a dia de boa parte da população.

ATUALIZAÇÃO:
Se quiser, você também pode ler o texto que escrevi após as reações das pessoas aqui no B9.

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