- Cultura 22.out.2015
“Ponte dos Espiões” reúne algumas das melhores marcas de Steven Spielberg
Com roteiro dos irmão Coen, diretor explora a ambiguidade em diferentes dinâmicas e possibilidades que só cabem ao cinema
⚠ AVISO: Pode conter spoilers
Ao longo de décadas de carreira, Steven Spielberg se especializou em utilizar a ficção para recontar momentos da história americana e trabalhar os principais componentes de sua identidade, marcas que aparentam ter se reforçado nos últimos anos, reforçando a já antiga ligação a nomes como John Ford e Frank Capra.
A abordagem clássica e formalista, que já contribuía para comparações dessa natureza, agora surge acompanhada de escolhas temáticas que o aproximam de um modo cada vez mais explícito dessa ideia. Questões essencialmente político-sociais, antes inseridas em narrativas variadas por meio de alegorias, como a crise da coletividade em “E.T. – O Extraterrestre”, passam a ocupar o centro do discurso, culminando em longas como “Lincoln”. “Ponte dos Espiões” não é estranho à tendência.
James Donovan (Tom Hanks) é um homem justo e moralmente orientado tentando fazer a coisa certa, uma descrição que poderia se aplicar a pelo menos metade dos protagonistas de Spielberg. A lógica, porém, não é de mera repetição, porque cada novo contexto explorado impõe a seus personagens principais um conjunto próprio de características e demandas. Aqui, ele é um advogado de seguros escolhido para defender Rudolf Abel (Mark Rylance), um espião soviético capturado na Nova York de 1957.
Sua atuação, inicialmente, é apenas procedimental: em teoria, o direito ao devido processo legal deveria ser parte da cultura americana mesmo em tempos de Guerra Fria. Sua justeza e o convívio com o acusado, porém, fazem com que o envolvimento no julgamento ultrapasse essa barreira, ampliando a defesa e tornando-o “o segundo homem mais odiado do país” — o primeiro posto, é claro, pertence ao inimigo infiltrado.
Desde a sequência inicial, quando agentes buscam o então suspeito pelas ruas do Brooklyn, a ambiguidade faz parte da narrativa: os casacos em tons de marrom se confundem, e não se sabe ao certo quem persegue e quem é perseguido. Quando o caso chega à corte, a questão se intensifica. O patriotismo está ali, escancarado, e as motivações dos personagens, nobres ou não, são esclarecidas em suas falas, mas o senso moral já não é coletivo. É Donovan quem o carrega naquele momento e em todos os posteriores, ainda que isso signifique lutar paralelamente ao suposto interesse nacional.
O drama de tribunal não parece ser o principal interesse do filme, talvez por se esgotar rapidamente pela falta de saídas imediatas para a situação. Estruturalmente, tudo se reinventa antes mesmo que a primeira metade da projeção se encerre. De maneira inventiva, mas sem chamar atenção para o próprio recurso, Spielberg se vale de uma sobreposição de planos para apresentar seu “segundo filme”: a história de um espião americano capturado na União Soviética. Tão distantes geograficamente quanto na trama até aquele ponto, Donovan e um jovem piloto têm seus rostos colocados lado a lado em tela por um instante, durante uma breve transição, indicando que seus caminhos se cruzarão.
Baseando a ação em salas e escritórios, Spielberg é capaz de explorar diferentes dinâmicas de poder através de diálogos e do movimento de seus atores em cena
A partir daí, o filme acompanha também Francis Gary Powers (Austin Stowell) em sua fracassada missão de espionagem. O advogado é o escolhido para negociar o resgate do rapaz, mantido prisioneiro pelos comunistas. Há duas frases, ditas por personagens diferentes, que explicam a relevância dessas situações gêmeas para o filme. A primeira é dita por Mary (Amy Ryan), esposa de James, antes de sua viagem à Europa para seu encontro com o inimigo: “Diga que vai voltar, eu nem me importo se é verdade”. A segunda, posterior e saída da boca de outro personagem, diz algo como: “Todo acidente corretamente posicionado é uma oportunidade”. Juntas, elas indicam a importância da construção de narrativas não apenas na lógica do conflito, como também para a própria ideia de cinema. Assim, embora o tradicional “inspirado em fatos reais” faça parte dos créditos de abertura, parece evidente que discurso e ficção caminham juntos, variando apenas a carga moral de tais elaborações.
Importante notar como determinadas cenas se repetem para produzir sentidos diferentes, reforçando a ambiguidade da narrativa
O modo como Spielberg trabalha essa relação é também uma de suas marcas históricas. Baseando a ação em salas e escritórios, o diretor é capaz de explorar diferentes dinâmicas de poder através de diálogos e do movimento de seus atores em cena. Hanks compreende a força da interpretação nesse universo em que a imposição não se dá unicamente pela força: desde a primeira cena, quando tenta persuadir um colega de profissão, sua postura é fundamental para que certas ofertas, mesmo as mais ousadas, sejam aceitas. No momento em que o “terceiro filme” surge e mais um americano — desta vez, o estudante Frederic Pryor (Will Rogers) — precisa ser resgatado, seu vai-e-vem retórico se torna ainda mais central.
Sob esse aspecto, é importante apontar a qualidade do texto escrito por Matt Charman e os irmãos Ethan e Joel Coen. Menos notáveis durante o filme, os traços característicos dos dois últimos se manifestam, principalmente, no humor excêntrico das passagens na Alemanha e na tragicômica personalidade de Abel, impotente diante de sua realidade e seu destino (a lembrança imediata, nesse caso, é “Um Homem Sério”). O ato final, contudo, retorna ao seu caráter mais spielberguiano. A trilha sonora de Thomas Newman, quase imperceptível ao longo do filme, se torna mais impositiva e passa a orientar as sensações em moldes semelhantes aos de John Williams, habitual colaborador do cineasta.
Além disso, é importante a forma como determinadas cenas se repetem para produzir sentidos diferentes, com a ambiguidade novamente voltando à tona. O exemplo mais claro e definitivo seria a imagem de pessoas pulando muros: primeiro, um grupo é brutalmente assassinado ao tentar atravessar a fronteira entre a Berlim oriental e a ocidental; depois, em um parque novaiorquino, jovens são vistos brincando de modo parecido, causando ilusão no olhar do protagonista. Os dois planos, colocados em contexto, sintetizam o trabalho de Spielberg, capaz não somente de dialogar diretamente com a construção da história, como de apresentar possibilidades que só cabem ao cinema.