“Sicario” apresenta ação impressionante, mas entorno irregular

“Sicario” apresenta ação impressionante, mas entorno irregular

Entre o realismo visceral e a manipulação estética, Denis Villeneuve revela um filme indeciso a respeito de seu objeto

por Virgílio Souza

⚠ AVISO: Pode conter spoilers

“Sicario – Terra de Ninguém” representa uma evolução significativa em relação aos últimos filmes de Denis Villeneuve. Menos preocupado em arquitetar reviravoltas para expôr seus personagens a desafios cada vez mais danosos física e psicologicamente, o diretor é capaz de investir com maior segurança na construção crescente do pesadelo em que seu elenco está mergulhado, sem que sejam necessários saltos escandalosos de gravidade.

Logo nos minutos iniciais, Kate (Emily Blunt) busca reféns com vida, mas encontra cadáveres apodrecidos; tenta solucionar um caso, mas se torna alvo de uma explosão que mata dois de seus colegas; pensa estar progredindo na carreira, mas acaba envolvida em um esquema que pode custar mais que seu cargo e sua integridade moral, a própria vida. Os sinais do que virá a seguir estão ali: alimentar ilusões é inútil em um universo em que a ausência delas representa a única possibilidade de sobrevivência. Escolhida para trabalhar ao lado do consultor Matt (Josh Brolin) e do agente Alejandro (Benicio Del Toro) na caçada ao líder de um cartel de drogas, ela é levada a Juarez, pouco além da fronteira mexicana.

o diretor Denis Villeneuve (à esquerda) com Benicio del Toro no set

o diretor Denis Villeneuve (à esquerda) com Benicio del Toro no set

Sicario

A cidade é representada como o inferno. Além de auxiliar na localização e no dimensionamento da área, o conjunto de planos aéreos serve para informar. Os tiros vistos e ouvidos são comparados a fogos de artifício pela frequência e intensidade. O céu, quase sempre presente em quadro, se alterna entre uma clareza quente e sufocante, como na sequência em que os oficiais ficam presos em um engarrafamento, e o nublado, com nuvens gigantes que mais oprimem do que alentam, como nos momentos pré-operação final.

Villeneuve deposita no visual a responsabilidade pelas sensações, confiando na ideia de que o poder das imagens é mais forte do que a mera sugestão do horror em discurso e subtexto. Assim, o filme não se desvia, por exemplo, de mostrar os corpos pendurados em pontes (cena que tem retornado diariamente aos noticiários locais, diga-se) quando Kate chega à região.

Embora seu campo de atuação perpasse surpresas desagradáveis o tempo todo, ela permanece estranha àquele local, e suas reações são constantemente utilizadas como referenciais para o estranhamento que aquilo provoca em qualquer um provido de humanidade. É por essa razão que ela se esquiva quando seu parceiro no FBI (Daniel Kaluuya) pergunta, posteriormente, o que aconteceu em determinado ponto da missão. Uma vez mostrado, não há necessidade de verbalizar — e talvez nem seja possível traduzir o sentimento em palavras.

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É problemática a forma como todos os elementos são dispostos de modo a reforçar a desgraça humana

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Essa frontalidade é uma estratégia inteligente, sobretudo quando se tem Roger Deakins como diretor de fotografia. A relação com a escuridão raramente vem acompanhada de luz, seu contraponto óbvio. Os personagens são engolidos pela sombra, metaforicamente e na própria composição dos planos, e o momento em que suas silhuetas somem, com o horizonte alaranjado ao fundo, é um dos mais potentes de um longa quase totalmente noturno, com alusões breves à obra de Michael Mann e ao recente “A Hora Mais Escura”.

É problemática, porém, a forma como todos os elementos são dispostos de modo a reforçar a desgraça humana. O mais incômodo deles é a trilha sonora de Jóhann Jóhannsson (que já havia trabalhado com Villeneuve em “Os Suspeitos”), uma espécie de emulação do que há de pior de Hans Zimmer. Em uma nota só, repetida incessantemente, a música instrumental se mistura ao barulho de disparos de revólver e hélices de helicópteros, resultando em um produto de mérito técnico, mas que mais irrita pela falta de recursos do que encanta ao produzir tensão.

Inserida nesse contexto, Kate é constantemente diminuída por Matt, Alejandro e o próprio filme. Resumida a um peão, a protagonista funciona como substituto para o próprio espectador, tateante, inconsciente dos meandros e descrente da podridão daquele universo. Apresentada como uma pequena fonte de luminosidade prestes a se apagar, ela acaba se tornando apenas guia naquela jornada, incapaz de reagir para além do espanto e inútil diante dos criminosos.

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Como se fugisse da escuridão enquanto mergulha cada vez mais fundo nela, ela se limita a questionar o que diabos a equipe está procurando — e a resposta, algo como “continue observando”, é tão sintomática desse desprezo por suas capacidades quanto o trecho em que ela recorre ao Google para conferir imagens de violência no mundo dos cartéis. Não por acaso, Del Toro domina a cena por completo mais por fragilidades do roteiro de Taylor Sheridan (ator de “Sons of Anarchy”) em construir sua principal personagem do que por problemas na composição de Blunt.

Villeneuve trata as sequências de ação com tanto esmero que todo o entorno passa a ocupar um espaço absolutamente secundário

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Soma-se a isso a desnecessária subtrama que acompanha a relação entre um policial mexicano e seu filho e o resultado é a completa falta de rumo, que revela um filme indeciso a respeito de seu objeto. O foco é a mera condução daquela investigação? Ou a diluição do poder do Estado, transferido para os criminosos? Corrupção em todas as frentes? Violência generalizada? A miséria como sentença de morte? Não se sabe ao certo, principalmente porque Villeneuve trata as sequências de ação com tanto esmero que todo o entorno passa a ocupar um espaço absolutamente secundário, como se o embate de forças e visões não importasse tanto quanto cada um de seus feitos técnicos, que têm como destaque a sequência final, filmada com câmeras de visão noturna e sensores de temperatura.

Situado no limbo entre um realismo visceral e bruto e a manipulação estética da imagem digital, “Sicario” apenas margeia a maior parte dos elementos que apresenta. O mal-estar da civilização, analisado a partir de um contexto particular, é um exemplo de ideia que não ultrapassa a superfície — um problema semelhante pode ser notado em seus filmes anteriores, ainda que os méritos desse último sejam mais evidentes. Assim, o que resta é uma porção de sequências muitíssimo bem coreografadas e montadas, capazes de impressionar pela eficiência com que prendem a atenção mesmo quando há apenas sombra e penumbra em tela, mas que se rodeiam por componentes irregulares e discussões não finalizadas.

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