“Aliança do Crime” é apenas mais um sub-Scorsese esquecível

“Aliança do Crime” é apenas mais um sub-Scorsese esquecível

Marcado por uma performance central emblemática, filme dirigido por Scott Cooper é aborrecido e impreciso

por Virgílio Souza

Ao longo das últimas décadas, Martin Scorsese influenciou dezenas de realizadores mundo afora. Marcas registradas e características específicas de seu estilo (algumas das quais revelam a genialidade da montadora Thelma Schoonmaker, sua habitual colaboradora) ganham vida de maneira constante sob a assinatura de profissionais como Paul Thomas Anderson e David O. Russell, que conseguem, em maior ou menor grau, conciliar as influências com traços próprios.

Não há, contudo, aspecto mais vinculado ao seu nome do que o universo dos filmes de gângster. Construído ao seus moldes em projetos como “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, o subgênero tem sido meio para incursões recentes de novos cineastas, invariavelmente comparados ao diretor de “Os Infiltrados”, sua principal referência.

A relação com o cânone é sempre complicada, gera pressões e demandas fantasiosas, quase impossíveis, em função de especificidades e intenções que devem ser respeitadas. Ainda assim, certos exemplares são capazes de contornar os obstáculos e não cair em rótulos comuns como “sub-Scorsese”, uma lista tão longa quanto difícil de preencher, de tão esquecíveis que são seus componentes. O caso de Scott Cooper não é diferente. Em “Aliança do Crime”, sua tentativa de emular o nova-iorquino transparece pelas mais variadas razões — e, em sua maioria, os paralelos surgem como negativos.

Scott Coopper dirige Johnny Depp no set

Scott Coopper dirige Johnny Depp no set

Black Mass

A matéria-prima é interessante: a história de James ‘Whitey Bulger’ (Johnny Depp), um dos mais poderosos e violentos criminosos da história dos Estados Unidos, abre margem para possibilidades infinitas. No entanto, Cooper demonstra estar preso a esquemas um tanto óbvios, que produzem um longa aborrecido e marcado pela imprecisão. Elementos como a ambientação entre os anos 60 e 80 são tratados com habilidade. Por outro lado, todo o resto carece de personalidade e se torna mais um exercício de derivação do que uma tentativa de articular símbolos já existentes. Seria difícil, por exemplo, distinguir alguns momentos deste longa de outros de filmes recentes e em teoria bem diferentes, mas igualmente genéricos, como “O Homem de Gelo” ou “O Mafioso”.

Parece também complicado decidir se o erro mais grave de “Aliança do Crime” é não querer se aprofundar no psicológico de seu protagonista ou simplesmente não conseguir realizar tal empreitada. Jimmy, como ele é chamado por boa parte dos personagens, tem uma porção de suas facetas apresentadas: a proximidade com o filho, a relação com a família e o vínculo estreito com a região sul de Boston são exemplos que logo vêm à cabeça. No fim das contas, porém, nada disso importa: ele é apenas um bandido. Assim, uma redução que poderia ser proveitosa se Cooper e os roteiristas oferecessem qualquer entrada nas motivações de Whitey para optar pelo mundo do crime acaba desperdiçada.

Contrastes como aquele estabelecido entre a figura do pai amoroso e a postura de gânsgster são usados constantemente ao longo da trama, surgindo como modos fáceis de humanizar o protagonista sem se preocupar nem um pouco com sua humanidade. Determinado a não se decidir entre o drama familiar, o suspense de máfia e a ação gráfica e realista, o filme é como seu principal personagem: mais aparência do que reflexão.

Black Mass
Scott Cooper demonstra estar preso a esquemas um tanto óbvios, que produzem um longa aborrecido e marcado pela imprecisão

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O diretor não se põe a pensar sobre seu objeto, contente em mergulhá-lo em uma estrutura que sequer sabe se quer ser linear ou fragmentada. Ao mesmo tempo em que ameaça caminhar como uma típica biografia em ordem cronológica, desde o princípio há incursões de depoimentos às autoridades que geram flashbacks (e mais depoimentos e mais flashbacks) — não fossem a ausência total de ambiguidade e o didatismo com que as situações são trabalhadas, o resultado seria uma colagem de episódios quase indecifrável.

A partir do momento em que opta mais diretamente por uma via e se foca mais em John Connolly (Joel Edgerton), colega de Jimmy na infância e agora agente do FBI, o filme passa a enfrentar problemas de outra natureza. O acordo entre o líder da máfia e a agência de segurança, firmado em 1971, é que ocupa a posição central do filme daí em diante. O roteiro, entretanto, se preocupa demais em justificar a posição adotada pelo criminoso, mostrando-se mais impressionado pela situação (a tal aliança do título) do que centrado nas pessoas envolvidas nela, responsáveis por torná-la tão distinta. Quando se percebe que as dúzias de personagens ao redor são tratadas sem tanto zelo, então, a avaliação tende a piorar.

BM

Se a composição feita por Depp é até bastante convincente, escondendo o ator por trás da maquiagem, o mesmo não pode ser dito do restante do elenco. Embora os esforços individuais sejam visíveis (casos como os de Juno Temple, Julianne Nicholson, Jesse Plemons, Corey Stoll e W. Earl Brown se destacam), as figuras em cena não vão muito além de rostos, figurinos e sotaques forçados, que vagam por Boston em participações diminutas e pouco relevantes.

Se a composição feita por Depp é até bastante convincente, escondendo o ator por trás da maquiagem, o mesmo não pode ser dito do restante do elenco

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Quando se resgata a ideia da cidade como personagem e elo entre tantas personalidades conflitantes, não é preciso direcionar o pensamento até Scorsese: inábil para conferir identidade ao local, Cooper não consegue ser nem sub-Affleck (em referência ao diretor de “Atração Perigosa”, que compartilha aquele universo). Exceção feita a cenas curtas, em que Jimmy interage com vizinhos e conhecidos da região, pouco se extrai do senso de comunidade que, somente em discurso, o filme prega valorizar.

Ainda, mesmo o que o cineasta guarda de outros projetos atrás das câmeras é problemático. “Crazy Heart”, sua estreia na direção, deu a Jeff Bridges um Oscar de melhor ator e uma indicação a Maggie Gyllenhaal, coadjuvante. “Tudo por Justiça”, lançado em seguida, passou debaixo dos radares sem deixar saudades. “Aliança do Crime”, por sua vez, é uma estranha combinação dos dois: um filme sem muito o que destacar positivamente, marcado por uma performance central emblemática. Parece pouco, sobretudo quando o que embala os acontecimentos não é a música country, mas apenas outra reprodução de Scorsese.

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