- Cultura 17.dez.2015
“O Despertar da Força” é uma recompensa aos anos de devoção por “Star Wars”
J.J. Abrams não se deixa ser engolido pelo legado, e molda a sua própria lógica visual e forma de narrativa
⚠ AVISO: Contém menos spoilers do que qualquer trailer
O fenômeno “Star Wars” pode ser encarado de diversas formas. Análises de campanhas de marketing e balanços de alcance de bilheteria, teses sobre os possíveis rumos da saga, artigos inteiros que buscam extrair mais daquele universo sob variadas perspectivas, teorias mais ou menos inusitadas desenvolvidas por fãs, reflexões sobre a influência da obra de George Lucas na indústria do entretenimento — tudo é possível.
A lista é extensa, praticamente interminável, mas compatível com o que a série, ao longo de quase quatro décadas, se prestou a realizar frente a um culto de seguidores que aumenta constantemente. Nesse contexto, “O Despertar da Força” é, para alguns, uma recompensa por anos de devoção e, para outros, precisamente os mais jovens, uma bela porta de entrada.
É digna de nota a maneira como se relacionam o sétimo longa em live action da franquia e toda a linha de produtos derivada de duas trilogias e milhões de extras. J.J. Abrams, o responsável por encabeçar o projeto, enxerga essa carga pré-existente não como fardo, mas como legado, e não evita buscar, aqui e ali, referências que sustentem essa relação. O expediente é mais complexo do que parece: trata-se de conciliar elementos muito distantes, que muitas vezes compartilham apenas suas características mais básicas.
Impressiona perceber, por exemplo, como a estilização das missões e perseguições remete aos jogos de videogame da marca, mas conserva a aparência de materialidade dos originais por dar aos efeitos digitais função complementar a sets e locações reais; como a agilidade e a posição da câmera nas sequências de combate se aproxima de uma lógica de cinema de grande escala muito mais atual que a da última trilogia, uma abundância injustificada de CGI; e como os itens colecionáveis, donos de maior adoração pela base de fãs, aparecem para satisfazer esse público-alvo mais especializado.
Com relação a esse último ponto, cabe notar a habilidade do longa em fundamentar tais aparições, construir razões sólidas para que elas não se limitem a peças de propaganda, momentos básicos de uma espécie de product placement. A prova do sucesso nessa empreitada é BB-8, talvez o personagem mais simpático de todo o universo, também importantíssimo para a narrativa.
Raras vezes um filme soube representar tão bem seu universo original ao mesmo tempo em que o desenvolve
Nos últimos anos, raras vezes um filme soube representar tão bem seu universo original ao mesmo tempo em que o desenvolvia. Há um processo de expansão neste “Episódio VII” que se propõe a apresentar personagens, cenários e conflitos, articular seus vínculos com o passado da série e colocá-los em ação. Não significa dizer, porém, que tudo já esteja dado desde o princípio, como se o sexteto anterior fosse muleta para uma suposta falta de ideias frescas. Novas dinâmicas surgem em dezenas, mas o roteiro é capaz de revelar apenas o que interessa para contar essa história e criar a fundação para novas aventuras, o que permite acreditar na sustentação da obra com certa independência dos demais (possivelmente, mesmo dos posteriores), embora ela seja por natureza um capítulo de algo maior.
Por mais que represente uma continuação de muitos fatores típicos da trilogia original, há um forte senso de ruptura com relação a questões específicas
“O Despertar da Força” é construído sobre os destroços de seus antecessores. É a partir das ruínas (de robôs derrotados e naves enferrujadas) que Abrams ergue sua trama. No que parece um esforço consciente de retorno às origens, a limpidez dos episódios I a III dá lugar aos veículos e planetas empoeirados dos primeiros longas. Soma-se a isso o fato de que os novos protagonistas representam uma ideia bastante clara de resistência à esterilidade da Primeira Ordem, o renovado e renomado grupo de vilões, e o pacote se torna promissor.
Sem entrar em muitos detalhes, Rey (Daisy Ridley) vive de catar sucata, condenada, às margens das grandes decisões da galáxia, e Finn (John Boyega) se apresenta como um desertor contrário a tais forças poderosas.
Dessa forma, os novos protagonistas são desvios certeiros de uma ordem menos natural e mais imposta — pela própria franquia, por uma lógica comercial, por pressões de todos os lados, inclusive dentro da história.
Deste modo, por mais que represente uma continuação (em certa medida, até uma reprise) de muitos fatores típicos da trilogia original, sobretudo de “Uma Nova Esperança”, há um forte senso de ruptura com relação a questões específicas, seja pela subversão de expectativas ou pela inversão de certas dinâmicas — as relações de parentesco, o surgimento de amizades improváveis, as interações com os droides e as histórias de origem, por exemplo, trilham caminhos novos, que se distanciam daquela trama-base.
No que diz respeito ao tom do filme, Abrams é mais “Super 8” do que “Star Trek: Além da Escuridão”
Diferente de Lucas, Abrams não se rende e acaba engolido pela estrutura vigente, mas toma o molde apenas como alicerce para suas próprias forma de narrar e lógica visual. Comparado ao que ele mesmo havia realizado em “Star Trek”, o resultado é ainda mais satisfatório pela segurança com que o material é trabalhado e conciliado com novas demandas.
Ainda em referência ao histórico do cineasta, dois aspectos surpreendem: seu autocontrole visual e seu enfoque emocional. O recurso ao lens flare, as luzes refletidas na tela que são sua marca registrada, é bem mais contido e produz rimas interessantíssimas com outros elementos em cena, tornando os reflexos luminosos parte de várias das imagens mais marcantes do filme (o capacete, o sabre, a neve).
No que diz respeito ao tom do filme, Abrams é mais “Super 8” do que “Além da Escuridão”: sabe dosar o sentimentalismo de quem tem Spielberg (o dos blockbusters) como ídolo e alguma sobriedade para tratar do potencial positivo/destrutivo da Força, cada vez mais encarada como uma energia que existe em intensidade variada dentro de todos, não apenas daqueles escolhidos.
Dentre os veteranos, a nostalgia domina, mas não se limita à repetição de bordões — e os que existem são muito bem inseridos
Nesse sentido, a introdução de um grupo de personagens e o retorno de outros merece destaque. Os novatos não são como super-heróis prontos para o campo de batalha, mas figuras que hesitam, duvidam de suas capacidades frente ao inimigo maior, e que eventualmente aceitam suas responsabilidades. O olhar sobre eles é humano, atento para reconhecer fraquezas e identificar mesmo o potencial mais tímido. A afirmação vale para Rey e Finn, em especial, mas também para o vilão mais ativo deste capítulo, que intimida com sua máscara e trabalho de voz, mas também se impõe sem eles, construindo uma atração pelo lado negro mais palpável que a de antagonistas anteriores.
Dentre os veteranos, a nostalgia domina, mas não se limita à repetição de bordões — e os que existem são muito bem inseridos. Alguns diálogos, principalmente os que envolvem a Princesa Leia (Carrie Fischer), ainda soam um pouco limitados e rasteiros, mas em geral as aproximações entre gerações funcionam, levando a missão central adiante e abrindo margem para possíveis novos mestres e aprendizes nos próximos filmes.
O aceno em forma de homenagem a “The Raid”/“Operação Invasão”, incluindo três dos principais atores do excelente filme de Gareth Evans, também desperta atenção. Apesar de curta, a passagem reflete um cineasta dedicado a integrar seu arsenal de referências a um conjunto que, em função de sua enorme bagagem, parece destinado ao sucesso.