- Cultura 14.jan.2016
Sem mitificar seu protagonista, “Steve Jobs” explora a humanidade do fundador da Apple
Direção de Danny Boyle e roteiro de Aaorin Sorkin condensam a vida do executivo em três apresentações públicas: 1984, 1988 e 1998
⚠ AVISO: Pode conter spoilers
É possível identificar vários dos aspectos mais importantes de “Steve Jobs”, indicado ao Oscar em duas categorias, logo nos primeiros vinte minutos de projeção. Mais do que uma simples formalidade de introdução, a abertura contém um volume de informações suficiente para definir os rumos do filme. Neste curto intervalo, passado no dia do lançamento do Macintosh, em 1984, vemos o protagonista (Michael Fassbender) rejeitar a filha, ameaçar um funcionário, questionar diversas decisões de seus subordinados, realizar pedidos inusitados, discursar apaixonadamente sobre seu trabalho, apresentar suas obras anteriores, ser chamado ironicamente de Deus e se envolver em outra meia dúzia de polêmicas. Não se trata de consagrar uma divindade, tampouco de destruí-la, mas de traçar o panorama de um percurso em que erros e acertos muitas vezes não são tão cristalinos quanto a tela de um iPad.
A estratégia de Danny Boyle consiste em condensar os elementos de interesse em períodos específicos (1984, 1988, 1998), combinando sua dinâmica ao texto ágil de Aaron Sorkin, como se aumentasse o volume de seus diálogos e desse a eles um ritmo musical bastante vibrante, seguindo as batidas da trilha sonora de Daniel Pemberton.
O resultado é um longa que, esteticamente, busca repetir a lógica de criação e marketing da Apple: design não é apenas aparência e sensação, é como funciona. O que deveria ser um balé eletrônico também em termos de estrutura, no entanto, acaba se revelando menos fluido do que o visual sugere. Embora explore diferentes momentos da vida de Jobs, recorrendo a flashbacks e saltos temporais, o roteiro é engessado na tentativa de construir um personagem, mais do que apenas apresentar os fatos relevantes de sua vida.
Parte do problema é que o protagonista se ergue, principalmente, por meio das conversas com seu braço direito, Joanna Hoffman (Kate Winslet). Para adentrar seu psicológico, conhecer suas dúvidas e arrependimentos, a melhor amiga/work wife é chamada à cena repetidamente, em um recurso que não apenas a transforma em acessório como também emperra a narrativa.
Nas mãos de Boyle e Sorkin, que desconhecem qualquer sutileza, a personagem é reduzida a um artifício para que se molde o caráter de Steve — e, vale notar, ela só encontra um esboço de redenção a instantes do fim, quando interfere diretamente em uma decisão e ganha alguma personalidade. O esquema é quase sempre o mesmo: ele se desentende com alguém, encontra a colega, discute com ela os acontecimentos anteriores e de alguma forma prepara o terreno para a cena seguinte.
Danny Boyle possibilita que Fassbender demonstre sua versatilidade, uma marca de sua filmografia, dentro da própria narrativa
Esse retorno constante às confidências é aborrecido, mas não é o único recurso no repertório da dupla de cineastas. “Steve Jobs” funciona melhor quando escapa dessa fórmula, perturba a cronologia e permite que as linhas do tempo se invadam. A montagem paralela durante um acerto de contas com John Sculley (Jeff Daniels) talvez seja a ilustração mais forte dessa ideia e uma das cenas mais impactantes do filme, ao lado do embate entre o protagonista e Steve Wozniak (Seth Rogen) no auditório.
Há variação também no tratamento dos produtos da companhia, o que evita a repetição das tradicionais apresentações do CEO. O lançamento do iMac, por exemplo, é mostrado através do último ensaio antes da premiere, ao passo que o embrião para o iPod e uma menção ao Apple Watch surgem em duas divertidas anedotas — por outro lado, a compilação de fracassos da empresa antes do retorno de Jobs não é de muito bom gosto.
A variação temporal cria também uma demanda por transformações físicas. Felizmente, Boyle não chama a atenção para tais mudanças: ao contrário, a opção é por suavizar as transições, auxiliando a composição do personagem sem maiores distrações. Quando a trama chega a 1998, por exemplo, a câmera enquadra Steve primeiro no telão, com a imagem menos nítida, e só depois em carne e osso, no palco. Desta forma, acostumando a audiência às diferenças entre cada uma daquelas figuras, o diretor possibilita que Fassbender demonstre sua versatilidade, uma marca de sua filmografia, dentro da própria narrativa.
A catarse do filme é essencialmente pessoal, tendo como pano de fundo um vídeo institucional da Apple
As idas e vindas do roteiro criam, ainda, rimas que indicam mudanças e permanências fundamentais nos personagens. São os casos do contraste entre o Steve que não aceita se atrasar, no início, e do Steve que não se importa com o atraso, no fim, e da forma como ele e Woz se portam quando estão no mesmo ambiente, da proximidade na velha garagem ao distanciamento na Symphony Hall.
A propósito, a relação com o antigo amigo serve como plataforma para que se discutam alguns dos temas mais interessantes do projeto, sobretudo aqueles vinculados à forma como Jobs encarava sua carreira profissional. Os debates sobre sistema aberto, as comparações entre informática e artes clássicas (“Computadores não são pinturas!” versus menções frequentes a peças de teatro e Bob Dylan), a orquestra como metáfora para a empresa, a tentativa de mudar a imagem da computação definida por Hollywood até então: tudo serve para alimentar o longa de referências e construir, juntos, o homem e sua obra. Nada mais natural, portanto, que a catarse do filme, essencialmente pessoal, ocorra tendo como pano de fundo um vídeo institucional da Apple.