- Cultura 8.abr.2016
“Rua Cloverfield, 10” é uma nova forma de ver o apocalipse (e as franquias)
Com produção de J.J. Abrams, diretor Dan Trachtenberg guia a atenção e a emoção dos espectadores através do mistério
⚠ AVISO: Contém spoilers
O fim do mundo já foi imaginado de centenas de maneiras diferentes somente no cinema de gênero norte-americano. Dos desastres naturais que, sobretudo com o auxílio de efeitos digitais, varreram do mapa cidades inteiras, ao temor de aniquilação nuclear dos anos de Guerra Fria, o apocalipse esteve sempre muito próximo do presente, da realidade, como uma possibilidade catastrófica a um dobrar de esquina.
Em 2008, ano de lançamento de “Cloverfield”, os livros e mais livros escritos a respeito do assunto ganharam um possível objeto de análise fresco e ambicioso, importante tanto por seu conteúdo quanto pela forma: um longa-metragem found footage protagonizado por atores desconhecidos, rodado em segredo e lançado como produto típico desses novos tempos em função de sua relação com a publicidade e a tecnologia.
Anos depois, “Rua Cloverfield, 10” surge como uma continuação — ao menos “espiritual” — digna de interesse por motivos curiosos. O conjunto principal de dúvidas (De onde vieram essas criaturas? O que elas querem? É possível escapar?), que o título entrega em parte, é semelhante ao anterior. É fruto do interesse de certo segmento da companhia Bad Robot (e de J.J. Abrams, aqui creditado como produtor) em estruturas que se questionam “E se?” constantemente. “Super 8”, produzido ao lado da Amblin, de Steven Spielberg, é outro exemplo disso.
Aqui, as perguntas se somam aos montes. “E se você acordasse de um acidente de carro sob cuidados médicos, mas presa à parede por uma corrente?” e “E se, nessa mesma situação, você tivesse sido salva pelo seu agora raptor de uma catástrofe de proporções sem precedentes?” são duas das forças motrizes iniciais. Em muitos sentidos, é como se o estreante em longas Dan Trachtenberg reproduzisse passo a passo a lógica das caixas mágicas de Abrams: a ideia de que o que importa não é necessariamente a resposta para uma curiosidade, mas a curiosidade em si, ou seja, de que quem guia a atenção e a emoção dos espectadores é o mistério, característica própria desse senso de possibilidades infinitas representado por uma caixa fechada.
Em termos de escala, contudo, o afastamento das bases do antecessor é significativo. O ritmo frenético do primeiro filme, marcado pelo movimento intenso e o olhar subjetivo da câmera, dá lugar a uma narrativa econômica, articulada em diálogos enxutos dentro de espaços reduzidos. Basta reparar como o passado de Michelle (Mary Elizabeth Winstead) é construído a parir de sequências tão simples como uma ligação telefônica (com breve participação da voz de Bradley Cooper), ou como a protagonista mapeia a casa e esboça seu plano de fuga em poucos olhares — as pistas dadas pelo roteiro são visualmente explícitas, de associação direta; e seu retorno em momentos posteriores da narrativa, quase garantido.
O ritmo frenético do primeiro filme dá lugar a uma narrativa econômica, articulada em diálogos enxutos dentro de espaços reduzidos
Isso não quer, dizer, no entanto, que não haja espaço para trechos ricos e inspiradíssimos no texto assinado por Josh Campbell, Matthew Stuecken e Damien Chazelle (este último, diretor-roteirista de “Whiplash”, adicionado à série no segundo episódio). A conversa sobre “Little Women”, por exemplo, quando Howard (John Goodman) não consegue adivinhar a palavra “mulher”, recorrendo então a “garota” e “princesa” e expondo algumas de suas falhas mais graves de compreensão do mundo, é uma preciosidade de construção e interpretação.
É igualmente impressionante como Trachtenberg consegue fazer o filme se beneficiar de sua condição de franquia, desviando-se das expectativas criadas pelo título final do projeto (outrora “The Cellar”, ou “O Porão”). As bases da história já estão dadas como consequência dessa serialização, o que permite que “Rua Cloverfield, 10” deixe para trás qualquer introdução sobre os ataques e parta para a ação em termos muito particulares. Assim, o bunker deixa de ser apenas um abrigo qualquer e passa a ser um local especial saído de “Além da Imaginação”, unindo claustrofobia e mistério em torno do mesmo medo do desconhecido. Ali dentro, as dinâmicas entre corpos e as disputas por ocupação de espaços cumprem papéis importantes. A metáfora do quebra-cabeças com peças faltando é útil, mas os recursos do diretor não se restringem a reunir alguns pequenos objetos como símbolos — a questão é formal.
Howard (John Goodman), quando sozinho, é enquadrado basicamente de duas maneiras: em closes no seu rosto enorme e à distância, em quadros que estabelecem sua dimensão em oposição às figuras e objetos ao seu lado. Mesmo fora da tela, os sons de seus passos e de sua respiração ofegante atacam a segurança da protagonista e levantam uma nova questão: quem é o verdadeiro monstro? Sua paranoia, tanto justificada quanto descontrolada, é o elemento-chave para que o filme se estabeleça como o oposto do anterior em termos de estilo. Agora, drama e performance importam mais do que espetáculo e grandiosidade, muito embora essas categorias se retroalimentem.
Drama e performance importam mais do que espetáculo e grandiosidade
A composição de Michelle, dona de força e atitudes que parecem herdadas de Ellen Ripley, a comandante da Nostromo em “Alien, O Oitavo Passageiro” e referência para o gênero desde então, é também fundamental nesse processo. Ao lado de Emmett (John Gallagher Jr., que já se provou um ótimo coadjuvante em trabalhos prévios), ela age e reage buscando manter equilíbrio e racionalidade diante de uma paranoia que se desdobra em várias facetas. Elementos como a prisão, o sequestro e a contaminação são novos e se juntam a dois dos pilares da franquia: os monstros e o apocalipse.
“Rua Cloverfield, 10” e “Cloverfield” são, por essa razão, contos distintos de uma mesma tragédia. Ambas as tramas habitam, com diferentes graus de proximidade e intensidade, o mesmo encadeamento de eventos, bem como os filmes que as embalam existem no mesmo universo, apenas em momentos e sob perspectivas variados. Parece prematuro afirmar que a estratégia se tornará norma, mas essa parece ser uma saída criativa para o esgotamento de certas franquias: em vez de simplesmente repetir personagens, por que não ampliar seus universos de fato e sem restrições, explorando seus espaços, histórias e conflitos próprios?