- Cultura 26.ago.2016
“Águas Rasas” aproveita limitações de maneira inventiva em um dos filmes mais impressionantes do ano
Jaume Collet-Serra, na direção, e Blake Lively, em cena, se destacam em terror minimalista no oceano
⚠️ AVISO: Contém spoilers
Após uma decepcionante temporada de blockbusters e alguns anos mergulhado em produções que têm no gigantismo seu principal (e muitas vezes único) trunfo, parece impossível não se deixar seduzir por “Águas Rasas”, um projeto de escala reduzida que entrega tudo o que seus irmãos maiores apenas prometem. A razão central para o sucesso é o diretor Jaume Collet-Serra (“A Órfã”, “Sem Escalas”, “Noite Sem Fim”), que se mostra cada vez mais seguro na condução de elementos como história, personagens e emoção, tão básicos quanto desprezados ou esquecidos por vários de seus colegas de profissão.
O conceito simples, quase minimalista, diverge da maior parte de suas companhias nos cinemas durante o verão — “Rua Cloverfield, 10”, lançado alguns meses antes, talvez seja o único caso similar. Aqui, as grandes catástrofes e as criaturas com super-poderes dão lugar a uma mulher, uma praia e um tubarão. O encanto, porém, não deriva apenas do contraste de tamanho entre as propostas, mas de diferenças gritantes de execução que confirmam a capacidade que o cineasta possui de fazer filmes de gênero dentro de uma visão autoral bastante clara e bem definida.
A impressão é que Collet-Serra compreende duas ou três coisas sobre a função melhor que qualquer outro cineasta de seu porte. Mesmo trabalhando em terrenos conhecidos (o terror focado em uma família, a ação centrada em um herói bruto e envelhecido), ele demonstra habilidade ao misturar aquilo que sabe fazer melhor com novos elementos de interesse, conduzindo o espectador com mãos firmes mesmo nas sequências aparentemente imprevisíveis. É uma receita simples, mas que poucos seguem com tamanha precisão.
Em “Águas Rasas”, as limitações são usadas em benefício próprio de maneiras muito inventivas. A praia que serve de cenário para a aventura, por exemplo, não é apenas objeto de atenção em função de sua beleza, embora esse aspecto seja também parte da conversa. Desde o princípio, quando a protagonista ainda busca o local a bordo de um jipe, a geografia desempenha papel importante na construção de contrastes. Os montes esverdeados que se erguem ao redor da areia são como paredões incontornáveis. A mata, que o veículo sofre para atravessar, torna o destino final ainda mais secreto. Quanto mais isolado, mais especial. Ou mais perigoso?
Encarregado do roteiro, Anthony Jaswinski segue a mesma lógica. Detalhes sobre o passado da jovem são apresentados em pequenas porções, durante o breve diálogo com o motorista e nas breves interações com outros dois surfistas. Pelo celular, ela faz contato com a família — pai e irmã — no Texas. Mensagens, fotos e vídeos ocupam a tela, dividindo espaço com seu corpo. Construída em poucas palavras, Nancy (Blake Lively) é protagonista de um filme em que drama e imagem caminham juntos, o primeiro se erguendo na força do segundo.
A impressão é que Collet-Serra compreende duas ou três coisas sobre a função melhor que qualquer outro cineasta de seu porte
Por trás dessa visão ensolarada, persiste a sensação de que algo ruim está por vir. Trata-se de uma antecipação que o primeiro contato da personagem com o mar logo confirma. No caminho entre paraíso e inferno, aquele é seu purgatório. O olhar de Collet-Serra demonstra atenção para esse câmbio sem que ele se renda à histeria fácil da câmera na mão de um “Capitão Philips” ou à elegância falsa de um “Até o Fim”. A meta primordial é a sobrevivência em seu aspecto mais puro, sem desvios fantasiosos ou crises de consciência.
Hora após hora, novos desafios se impõe. Ao tubarão faminto, somam-se a alta da maré e corais venenosos. Também causam problemas um corte profundo na perna, lesões nos pés e braços, o frio e a fome. Para Nancy, a questão é objetiva: seja na forma de disputa por espaço ou de corrida em alta velocidade, é preciso lidar com cada obstáculo de uma vez, buscando soluções improváveis com recursos escassos.
Para Collet-Serra, as adversidades são como oportunidades para agravar o risco oferecendo algo além do simples caráter prático da jornada. Mais do que uma demonstração de superação física da protagonista diante de sua inferioridade natural, a luta com um animal marinho dentro d’água serve para que o diretor explore o que há de mais abstrato em cena. Filmando em digital pela primeira vez na carreira, ele se aproveita do cenário majoritariamente líquido, com raios de luz penetrando de vez em quando, para misturar cores e construir imagens verdadeiramente desconcertantes — a sequência em que o vermelho invade o azul instantaneamente é o destaque do longa, ao lado daquela com águas-vivas.
O momento em que os esforços de atriz e diretor confluem com maior força é aquele em que Nancy assume o controle da câmera
Tendo estabelecido Nancy como um corpo material que luta para se preservar e o tubarão digital como uma ameaça que oscila entre o visível e o invisível, o filme permite que todo o resto se dissolva. Forma-se, assim, um balanço magistral entre o que é palpável (ela, as pedras, uma baleia) e o que há de subjetivo ou desconhecido (a dor, o tempo, o cheiro de sangue, o fundo do mar).
Essa combinação faz com que toda cena seja dominada por sensações de medo e urgência reais. Os enquadramentos à distância transformam a garota em presa aparentemente fácil diante do tamanho do predador, enquanto os planos mais próximos, entre médios e close-ups, transbordam agonia. A reação de Lively a um ataque, em especial, é desesperadora, e sua consciência dos riscos que corre torna a ação ainda mais impactante.
O momento em que os esforços de atriz e diretor confluem com maior força, porém, é aquele em que Nancy assume o controle da câmera. Ali, filmar é o último ímpeto de preservação de memória e sobrevivência — um símbolo que ganha contornos ainda mais importantes quando parte de uma jovem em ascensão, mas que ainda deve ser melhor aproveitada no meio, e de alguém que faz ótimo cinema de gênero com alcance popular, mas cujo nome segue desconhecido.