- Negócios 9.dez.2016
Davi Calil e as oportunidades do mercado independente de quadrinhos
Em entrevista ao B9, o pintor, quadrinista e ilustrador fala do futuro das HQs brasileiras além da “Turma da Mônica”
Um pensamento que já teve o prazo de validade expirado é o de que história em quadrinhos no Brasil se resume à “Turma da Mônica”. Mauricio de Sousa esteve – e ainda está – presente na vida de muitos brasileiros desde o momento da alfabetização e é certo que ainda vai fazer companhia para muitos novos leitores, mas não, a produção brasileira não se resume à garotinha do vestido vermelho.
A cada ano que passa novos artistas vão se moldando e arranjando maneiras de mostrarem seus trabalhos ao público – seja através de publicação com editoras, páginas em redes sociais, projetos de financiamento coletivo ou mesmo investindo dinheiro do próprio bolso para imprimir e distribuir a quem se interessar.
O Artists’ Alley, da CCXP, reuniu mais de 300 artistas independentes nessa edição de 2016, mas não é só lá que a galera se esbarra. Na Bienal de Quadrinhos de Curitiba – que aconteceu entre os dias 8 e 11 de setembro no MuMA – encontrei grandes ideias e artistas, novos e em ascensão, ansiosos para alcançarem um novo público, e pude conhecer pessoalmente alguém que eu já admirava pelas obras publicadas: Davi Calil.
Pintor, quadrinista e ilustrador paulista, Davi Calil começou a carreira publicando histórias ilustradas em algumas revistas até criar a editora independente Dead Hamster Comics, onde lançou algumas de suas obras, entre elas “Quaisqualigundum” (com roteiro de Roger Cruz) e “Surubotron”. Ele também participou da colorização do álbum “Turma da Mata – Muralha”, da Graphic MSP, mas em julho de 2016, depois de 3 anos de muito trabalho, “Uma Noite em L’Enfer” chegou às livrarias em um acabamento de primeira e pelas mãos da Editora MINO. “Era um trabalho tão grande que eu achava que ele merecia o cuidado de uma editora”, conta o artista.
Calil desenha desde criança – aos nove anos ele começou a estudar num ateliê de Guararema (interior de São Paulo), onde teve contato com seus primeiros livros de pintura. Sua formação foi se moldando ano após ano, mas o traço amadureceu muito quando se dedicou aos quadrinhos e admitiu o próprio estilo. “No começo os desenhos eram ruins de doer, mas aos poucos eles foram melhorando e quando me dei conta já estava trabalhando como ilustrador”, comenta.
Ele contou com o apoio dos pais desde pequeno e, “quando algum trabalho meu saía em revistas e jornais, a preocupação da minha mãe de que eu ia morrer de fome ia embora. Parece que ser publicado ‘é de verdade’. Eu queria trilhar o caminho de publicar com uma editora e ver meu trabalho numa livraria – L’Enfer já ficou ao lado do Asimov e eu fiquei super feliz, esse é o tipo de experiência que você raramente tem quando publica de maneira independente.”
Uma Noite em L’Enfer é uma graphic novel recheada de referências e homenagens à grandes artistas como Van Gogh, Klimt e Goya
Num evento como a Bienal de Quadrinhos em que os artistas independentes são maioria, é normal se perguntar as diferenças práticas e subjetivas de ter o apoio de uma editora ou fazer tudo sozinho. Quando o trabalho fica inteiramente por conta do autor, muitas vezes ele não consegue explorar o entorno da obra por estar preocupado em escrever, ilustrar, revisar, finalizar, imprimir e colocar na mão de novos leitores.
“A maior parte das pessoas não é obcecada por pintura como eu sou, então L’Enfer tem vários easter eggs que podem passar batidos pelo público, mas quem está familiarizado com o universo da pintura vai reconhecer uma ou outra e se perguntar se tem mais”, explica o ilustrador. Muitos dos quadros da graphic novel fazem referências à grandes obras de Gauguin, Toulouse-Lautrec, Klimt, Van Gogh, entre outros, e a editora Mino criou painéis especiais para sinalizar algumas dessas pequenas homenagens. “Eu falei sobre isso na editora e eles se empolgaram em produzir esse material para divulgação de L’Enfer“ – que, aliás, você pode ver aqui.
Gustavo Borges, autor de “Pétalas” (um dos projetos mais bem-sucedidos do Catarse), comentou em uma das mesas promovidas pelo evento que acredita que o mercado de quadrinhos no Brasil ainda se limita a um ovo que vai quebrar a casca em breve para sair do nicho, e que talvez essa geração de artistas ainda precise lidar com muitas questões para conseguir espaço, mas a próxima já vai se posicionar num mercado mais maduro e com mais oportunidades.
O velho ainda não morreu, o novo ainda não nasceu. É o que a gente vive na mídia impressa. O papel não morreu, e dificilmente vai, mas o digital ainda não se estabeleceu”
Ele acredita que, com o tempo, a impressão em papel vai se limitar a coisas mais relevantes e caprichosas, daquelas que o leitor quer colecionar. “Eu estou trabalhando numa web comic agora e meu plano é lançar essa história de maneira gratuita e deixá-la ao alcance de muito mais gente do que uma tiragem impressa iria. E se eu vier a imprimir essa história depois, a pessoa vai ler online, gostar e aí sim buscar a edição física como algo para colecionar, e não porque o único jeito de ter acesso a ela é comprando na livraria”, opina.
“…os artistas em L’Enfer estão em um bar, contando histórias desgraçadas, bebendo muito e ninguém sabe o que é verdade ou não.” – Davi Calil
Como forma de complemento a essa visão das obras digitais, no posfácio de Luis Bueno para Uma Noite em L’Enfer a gente encontra um trecho em particular que fala sobre o otimismo vivido no final do século XIX com a expectativa de que a Revolução Industrial e a riqueza gerada a partir dela mudaria tudo, e que a tecnologia alcançaria patamares antes apenas imaginados. Isso se concretizou, de fato, mas a mesma tecnologia usada para construir pode ser usada para destruir e tivemos que enfrentar crises, duas guerras mundiais e ainda tocar a vida sob um clima de ameaça constante.
“O que a gente vive hoje, na virada do século XX, é muito parecido com aquela época, no sentido de apostar em algo que vai mudar tudo. Todo mundo achou que a internet resolveria os problemas do mundo: todos iriam se comunicar, se unir, se aproximar. Lógico que vieram muitas coisas boas disso, mas você também aumentou o discurso de ódio, a intolerância em todas as áreas, a exposição e etc”, complementa o artista.
Considerando que, na internet, nenhum erro passa batido, pergunto se “Uma Noite em L’Enfer” chegou a sofrer alguma crítica por conta da liberdade poética utilizada na obra – afinal de contas a história começa quando Van Gogh se recupera do tiro que, na realidade, lhe tirou a vida, e vai parar em um cabaré parisiense com outros artistas que não se cruzaram na época para contar histórias de morte, sexo e mistério.
“Eu ainda não tenho tantos trabalhos autorais que me tenham feito sair da zona de conforto. Antes de ser quadrinista, sou pintor, então esse é um assunto que eu consigo explorar com tranquilidade, mas os artistas em L’Enfer estão em um bar, contando histórias desgraçadas, bebendo muito e ninguém sabe o que é verdade ou não. Como tem esse humor por cima, a pessoa não se sente apta a cobrar veracidade de uma história que já se mostra caricata. Se eu tivesse a pretensão do James Cameron ao fazer o filme do Titanic com ‘os acontecimentos mais próximos da realidade’, eu teria que lidar com Neil deGrasse Tyson dizendo que a posição das estrelas no céu no dia que o Titanic naufragou não era aquela”, brinca ele ao se referir ao comentário de Tyson que fez Cameron editar o próprio filme anos depois.
“Uma Noite em L’Enfer” está conquistando novos leitores – e elogios – a cada semana. Em paralelo, Davi Calil também participa de exposições e dá aulas em uma academia de artes em São Paulo.
Eu tenho um curso com uma técnica de Pintura Relâmpago, então além de ensinar algo eu tenho que produzir e mostrar um processo eficiente”
Fazer as duas coisas ao mesmo tempo é uma habilidade que foi adquirida com a prática. E praticar é o segredo para ver resultados (Mr. Miyagi que o diga). A maior dificuldade dos alunos é a falta de paciência e perseverança – muitos já querem produzir coisas incríveis na primeira aula e se frustram quando isso não acontece. Um dos primeiros animadores da Disney, Walt Stanchfield, disse certa vez que todos temos 10 mil desenhos ruins dentro de nós e quanto antes nos livrarmos deles, melhor. “Eu gosto desta ideia, acho que com a pintura é a mesma coisa, os desenhos bons só vão sair quando você gastar os que não prestam”, complementa Calil.
“Todos temos 10 mil desenhos ruins dentro de nós. Quanto antes nos livrarmos deles, melhor.” – Walt Stanchfield
A web comic de Davi Calil se chama “Kung Fu Ganja” e foi lançada no final de novembro. O artista já tem muita coisa adiantada para poder manter o ritmo de produção no próximo ano, mas parte do primeiro capítulo já está disponível para leitura gratuita no Tapastic. “Tenho escutado muitos audiobooks para manter a leitura em dia e, pra falar a verdade, agora estou pesquisando bastante para o Kung Fu Ganja, então passei a buscar materiais sobre a história da China para aprimorar os roteiros”. Você pode acompanhar as novidades do projeto na página criada especialmente para o Kung Fu Ganja no Facebook. “Quero dar esse passo e espero que a obra chegue em muito mais pessoas”, finaliza.
Enquanto as grandes livrarias ainda separam um espaço modesto aos quadrinhos nacionais, já existem algumas lojas inteiramente dedicadas à venda de trabalhos independentes, autorais, diferentes – além, é claro, do apoio que os autores podem buscar na internet com leitores, blogueiros, youtubers e toda essa galera que consome, sim, Turma da Mônica, mas também outras obras tão legais quanto. Opções não faltam, nem para o leitor, nem para o autor.
Raquel Moritz é publicitária, publica vídeos e textos sobre literatura e quadrinhos no Pipoca Musical e, por mais que tente, não consegue nem desenhar boneco palito.