Behind The Brains: The Matrix
Recentemente, tenho abordado aqui no Brainstorm #9 alguns processos criativos envolvendo a produção de cinema, e a idéia é expandir isso para outras indústrias como televisão, games e música. Exemplos: “Os Criadores de Criaturas” e “As trilhas dos trailers”.
Muito mais do que discutir e mostrar aspectos técnicos, a idéia é buscar inspiração por trás da criação de obras consagradas (ou não) do entretenimento, fugindo do estrito envolvimento com marcas que sempre procurei trazer aqui pro blog. Isso partiu de curiosidades simples: “como deve ter sido o brainstorm de tal filme?”, “De onde surgiu a idéia de tal série?”, “como foi a concepção de tal projeto?”, etc.
E para continuar essa série de posts, que provisoriamente (ou não) dei o nome de Behind The Brains, escolhi abordar uma obra fundamental da história do cinema (ainda que recente), aproveitando também o seu aniversário de 10 anos, completados exatamente no dia 31 de março de 2009. É impossível falar de “The Matrix” sem parecer repetitivo, já que você que está lendo esse texto certamente assistiu e testemunhou o fenômeno de perto.
Porém, não custa lembrar o impacto que a criação dos irmãos Larry e Andy Wachowski causou, revolucionando todo um gênero cinematográfico e criando demanda para experiências cada vez mais fortes e maiores, além de passar a fazer parte imediatamente da cultura pop e influenciar muito do que viria a seguir. A história toda você já conhece, mas de onde isso saiu?
Os Irmãos Wachowski sempre falaram de suas influências através dos quadrinhos japoneses, do kung fu e da mistura entre filosofia oriental e ocidental. Isso tudo pode ser percebido na tela, mas o argumento principal saiu de um tratado do filósofo francês Jean Baudrillard, publicado em seu livro “Simulacra & Simulation”.
Neo pega seu “Simulacra & Simulation” com compartimento secreto
Editado originalmente em 1985, a obra só teve sua primeira versão em inglês em 1996, ou seja, apenas três anos antes de “The Matrix” chegar aos cinemas. As idéias de Baudrillard sobre realidade, corpo, símbolos e sociedade funcionaram como essência do filme, além das várias referências pontuais em diversas cenas. Apesar disso, Baudrillard declarou, anos mais tarde, que “The Matrix” distorceu e não compreendeu seu trabalho.
Outras duas grandes referências literárias para a concepção do universo de Matrix são “Evolutionary Psychology” de Dylan Evans e Oscar Zarate, e “Out Of Control: The New Biology of Machines, Social Systems, and the Economic World” escrito por Kevin Kelly. Aliás, são esses três livros que os Wachowski exigiram que o ator Keanu Reeves conhecesse antes de ler o roteiro. Dá para incluir nessa mistura mais uma tonelada de textos, mas nunca poderia esquecer de destacar o clássico “Neuromancer” de Willian Gibson, o primeiro a abordar sistemas como forma de interação humana.
Com tudo isso reunido, o que se tinha eram argumentos filosóficos densos e complexos colocados em movimento através da estética dos quadrinhos e mangás, um verdadeiro mashup cyberpunk. Falando assim parece simples, mas quantas pessoas poderiam pensar que essa associação de coisas poderia virar um filme? E mais ainda, que poderia dar certo?
O próprio produtor de “The Matrix”, Joel Silver, revelou que foi quase um milagre que o filme tenha acontecido. O roteiro era complexo, poucos conseguiram entender, e seria ainda mais difícil convencer a Warner Bros. arriscar com algo tão alternativo. É então que entra outra parte essencial do projeto: os storyboards.
Storyboards de Steve Skroce
Eles foram necessários para cumprir dois papéis: explicar visualmente o roteiro para aqueles que tinham achado complicado demais, e ajudar a vender a idéia para a Warner, afinal, dar 100 milhões de dólares na mão de dois diretores estreantes não era tarefa para qualquer um. Vale lembrar aqui que, os Irmãos Wachowsky também tiveram que fazer uma outra concessão para poder dar vida ao universo de Matrix. Dirigiram “Ligadas pelo Desejo” (Bound), um filme dramático de baixo orçamento, apenas para provar que tinham capacidade de dirigir.
Já que os storyboards foram vitais para que “The Matrix” saísse do papel, então talvez tudo fosse diferente se os Wachowsky não tivessem a ajuda de Geof Darrow. Ilustrador e designer, Darrow ficou conhecido principalmente por sua colaboração com Frank Miller na HQ “Hard Boiled”, lançada em 1990, além de ter trabalhado em visuais para o filme “TRON”.
O que Darrow fez para “The Matrix”, junto com o ilustrador Steve Skroce, foi criar verdadeiras narrativas gráficas, storyboards dramáticos em um nível de detalhe insano. Suas artes conceituais são responsáveis por muito do que o filme virou. Uma das principais cenas que demonstram seu estilo é quando Neo desperta: a máquina que praticamente o ataca é um mecanóide clássico de Darrow, feito de tubos e telas.
Artes conceituais de Geof Darrow
O “renascimento” de Neo e a máquina de Geof Darrow
Essa concepção artística é inegavelmente uma das grandes marcas registradas do filme, junto com a proposta visual de retratar o mundo real em tons azuis e a simulação em verde. Além disso, os cenários recheados de malhas e grades representam a visão das máquinas, como 0 e 1.
No final das contas, “The Matrix” é um somatório de todas as suas influências, um amálgama artístico e filosófico que gerou um produto único. Porém, já era de se imaginar que o filme não passaria incólume das acusações de plágio e excesso de referência. Do animê “Ghost in the Shell” aos conceitos filosóficos milenares, dos quadrinhos “The Invisibles” aos livros cyberpunk, de “Alien – O Oitavo Passageiro” aos filmes noir clássicos, tudo virou pedra no telhado dos Wachowsky.
Uma comparação visual entre “The Matrix” e “Ghost In The Shell”
O processo criativo de “The Matrix” talvez nunca possa ser explicado ou enxergado da maneira como fazemos no dia-a-dia. Não é apenas sentar numa reunião e decidir o que fazer, também não é um insight milagroso que surge quando menos se espera, mas sim juntar o que se viu a vida inteira em uma obra distinta (Tarantino faz isso com todos os seus filmes).
Os próprios Wachowsky admitem que, nesse único filme, estão todas as idéias que já tiveram na vida. Isso ficou provado mais tarde, com as duas sequências meia-boca que prejudicaram algo que não precisava de continuação, arruinando o mistério, o tom político e dualidade.
De qualquer forma, souberam reunir conceitos e estéticas já existentes em algo que se tornou absolutamente novo, redefinindo um gênero. E certamente, com essas toneladas de referências que recebemos todos os dias, isso tudo funciona como uma lição. Se você é fã de “The Matrix”, finalizo com dois links pertinentes aos 10 anos do filme: “Animatrix: O Segundo Renascer” no Smelly Cat e o Nerdcast especial sobre a trilogia.
Os Wachowsky, atores e produtores falam das origens do filme. Trecho do documentário “The Matrix Revisited”.