“3%” traz boas ideias, mas não parece saber qual história quer contar

“3%” traz boas ideias, mas não parece saber qual história quer contar

Os principais pontos positivos e negativos da primeira série brasileira (original) da Netflix

por Virgílio Souza

⚠️ AVISO: Contém spoilers

Em 2011, o episódio piloto de uma série de ficção científica foi lançado no YouTube com o intuito de atrair canais de televisão interessados em desenvolver uma temporada completa.

Cinco anos depois, “3%” estreia com oito capítulos pelas mãos da Netflix, em sua primeira experiência produzindo conteúdo original brasileiro no formato. Nessa distopia criada por Pedro Aguilera e agora comandada por César Charlone, de “Cidade de Deus”, cada indivíduo tem só uma oportunidade de conquistar uma vida melhor. Para isso, é preciso encarar um processo seletivo que rejeita praticamente todos os candidatos.

Analisamos os principais pontos positivos e negativos dos oito capítulos do seriado, lançado em 190 países pelo serviço de streaming.

César Charlone no set

César Charlone no set

3por

A estrutura é perfeita para a plataforma

A série consegue aproveitar bem as possibilidades de seu formato. Desenvolvida para o serviço de streaming e lançada por completo na última sexta-feira, “3%” constrói mistérios distintos para cada um de seus episódios e, assim, alimenta a ansiedade do público para além de seu interesse principal, o próprio Processo. Os desfechos dos episódios ora possuem função informativa (somente o fim de “Portão”, o quarto, define o desfecho de um personagem, confirma expectativas sobre outro e afunila de vez a competição), ora trazem pretensões mais amplas (entre os vários cliffhangers, que se tornam cada vez mais intensos, os destaques são o trio “Água”, “Vidro” e “Cápsula”).

Ainda que o recurso a reviravoltas constantes pareça esgotado em certos momentos, é ele quem mantém a trama caminhando adiante, sempre em ritmo acelerado. O esquema de apresentar as origens dos personagens separadamente pega emprestado de produtos já existentes, como “Orange is the New Black”, e o faz com eficiência. A estratégia encontra resultados variados na primeira metade da temporada, em especial pela quantidade de questões abordadas pelos roteiristas, mas embala a partir do quinto capítulo, quando o seriado decide abrir parênteses para as memórias de Ezequiel (João Miguel), fundamentais para a solução de todas as interrogações.

A alegoria é frágil

O conceito central de “3%” é uma versão extremada da realidade brasileira. Ao longo de pouco mais de seis horas de duração, porém, a série perde seguidas oportunidades de se aprofundar em determinadas questões. Termos como “mérito”, “justiça” e “oportunidade” aparecem aos montes, mas a discussão raramente ultrapassa a superfície ou apresenta novas perspectivas. Aparentemente indeciso sobre qual história pretende contar, o roteiro constrói seu universo sem muito a dizer sobre os dois lados, Continente e Maralto. Nesse sentido, é de se lamentar a escolha de se concentrar apenas no Processo, extrapolando esse ambiente controlado apenas em fugas ocasionais e flashbacks.

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Boas dinâmicas entre personagens

Quem cumpre o papel de representar essa disparidade econômica é o núcleo principal de personagens. Tratados como arquétipos, tipos sociais mais ou menos definidos, os jovens possuem trajetórias distintas que, se não condicionam, ao menos orientam seus comportamentos. Falta um pouco de coesão na construção dessas figuras, uma atenção maior para acompanhar as mudanças pelas quais elas passam ao longo do seriado, mas observar como pessoas diferentes adotam cursos de ação diferentes é o que há de mais interessante aqui. Suas melhores dinâmicas vêm da necessidade de colaboração entre Rafael (Rodolfo Valente) e Michele (Bianca Comparato), donos da mesma convicção, mas de posicionamentos divergentes, e da forma como Joana (Vaneza Oliveira) e Fernando (Michel Gomes) enfrentam seus desafios. É nesses arcos que a ideia do Processo como um laboratório comportamental parece melhor executada.

Explicações demais

O roteiro de “3%” demonstra confiança ao oferecer uma porção de características básicas a seus personagens e permitir que eles ajam e reajam a partir de estímulos externos e motivações internas. Infelizmente, essa economia não é acompanhada quando as regras do jogo estão em questão. A cada novo capítulo, além de o funcionamento dos testes ser descrito nos mínimos detalhes, mesmo enquanto acompanhamos simultaneamente o desenrolar da ação, há espaço para um número infinito de diálogos explicativos e redundantes entre participantes e aplicadores. Como em uma novela, mesmo sozinhos os protagonistas conversam em voz alta para detalhar suas intenções. Riscos, medos, sensações, planos, conspirações: tudo é vocalizado, quase nada deixado para a imaginação.

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Mas faltam respostas

A grande exceção ao comentário acima é Maralto, que nunca é vista de perto. A série acerta ao esconder a ilha para onde vão os 3% por dois motivos. O primeiro deles é óbvio: a omissão assegura que o mistério permaneça sobre pelo menos um elemento-chave desse universo, possivelmente o mais importante deles. Em segundo lugar, porque isso mantém o ruído entre aqueles que creem e aqueles que não creem. Michele e Fernando, por exemplo, possuem relações diferentes não apenas com o Processo, como também com o destino, em si. Não oferecer uma resposta, evitando determinar qual dessas visões é a mais próxima da realidade, é um trunfo valioso.

O visual fica devendo

Em muitos sentidos, “3%” é uma compilação de referências. Jovens insurgentes que lutam contra o sistema opressor em uma sociedade distópica já foram retratados centenas de vezes com enfoques e temáticas semelhantes. As comparações imediatas com “Jogos Vorazes”, “Divergente” e outras franquias recentes não ocorrem sem motivo, e muitas vezes é frustrante não conseguir se esquivar delas. Ainda assim, nada é mais incômodo que a falta de imaginação na construção visual da série.

Uma série que pretende discutir a realidade brasileira não pode se contentar em ser tão asséptica, de um lado, e tão caricata, de outro

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Novamente, a decisão de isolar os participantes do restante do mundo gera complicações, porque o espaço em que a seleção ocorre insiste em ser apenas genérico. A estética reproduz, detalhe por detalhe, características importadas do imaginário do cinema norte-americano para esse tipo de cenário. Salões amplos, cores claras, formas arredondadas, traços mínimos, telas e espelhos que refletem tudo o tempo todo: o manual de instruções é seguido à risca, como se a localização geográfica não mais importasse ou fosse apenas uma questão de discurso.

No Continente, o problema tem outros contornos. O local onde vive a população excluída de Maralto não possui características marcantes. Nas poucas vezes em que aparece, o cenário se resume aos becos de uma favela sem qualquer sombra de identidade. Quando surgem moradores, seus figurinos e maquiagens ecoam o discurso contra exclusão, mas revelam uma produção incapaz de criar traços distintivos para alguns de seus segmentos mais importantes. Uma série que pretende discutir a realidade brasileira não pode se contentar em ser tão asséptica, de um lado, e tão caricata, de outro.

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