“La La Land”, um musical entre sonho e realidade

“La La Land”, um musical entre sonho e realidade

Favorito na temporada de premiações, filme dirigido por Damien Chazelle busca resgatar a magia dos musicais sem perder de vista as ambições de seus protagonistas

por Virgílio Souza

⚠️ AVISO: Contém spoilers

“La La Land: Cantando Estações” se sustenta no constante embate entre sonho e realidade. Em diversas ocasiões ao longo do último ano, ao comentar o projeto, o diretor Damien Chazelle mencionou o desafio de equilibrar essas duas forças. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que continua a explorar a temática, central para seus longas anteriores, “Guy and Madeline on a Park Bench” e “Whiplash”, ele constrói uma atmosfera bastante específica a partir de um mosaico de referências dignas de fantasia.

Seus personagens principais são imagens desse desejo-a-realizar: Mia (Emma Stone) é uma barista que se esforça para ser atriz; Seb (Ryan Gosling), um pianista que planeja abrir um clube de jazz. Os sonhos estão em todo lugar, da atmosfera de fantasia da sequência no observatório ao conteúdo de um de seus números musicais mais decisivos (“Um brinde aos sonhadores”, recado aos tolos que ousam imaginar, é também seu verso mais marcante). A batalha por um final feliz não é simples, no entanto.

Como em seus outros trabalhos, muitos dos percalços enfrentados pelos protagonistas parecem colocados no caminho por eles mesmos. Em seu primeiro longa, é Guy quem toma as decisões que levam ao fim do relacionamento cujo término irá lamentar adiante; no segundo, o papel de complicador cabe à arrogância de Andrew, incapaz de conciliar suas ambições musicais e um relacionamento estável com a família e a namorada. De modos distintos, os dois são sujeitos que, levados ao limite, precisam priorizar suas paixões e, conscientemente, optam pela carreira em detrimento do romance.

O diretor Damien Chazelle e Ryan Gosling no set

O trabalho de Chazelle com os personagens é mais exigente nesse musical. Também assinado pelo cineasta, o roteiro busca ser igualmente generoso com seu casal de artistas aspirantes, dividindo a atenção entre eles. Ainda assim, “La La Land” não consegue capturar muito da garota e do rapaz para além da superfície antes de colocá-los para cantar e dançar. Em “Guy and Madeline”, por exemplo, o diretor demonstrava um interesse menos passageiro pelo cotidiano e, pintando retratos apurados da vida e da arte de um homem e uma mulher, buscava entender suas individualidades.

Não se trata de ausência de esforço. Curiosamente, o problema é de falta de imaginação. A esfera profissional da vida de Mia é observada de maneira exageradamente econômica, orientada apenas pela eficiência. A fim de fazer a trama fluir, a direção apresenta seus elementos mais rotineiros com a mesma agilidade de “Whiplash” e, em três ou quatro instantes (um latte sendo preparado, uma interação com uma cliente famosa, uma discussão com a chefe), resume parte significativa da árdua jornada da atriz em busca de oportunidades.

“La La Land” não consegue capturar muito da garota e do rapaz para além da superfície antes de colocá-los para cantar e dançar

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O cenário não é muito diferente no campo artístico. As audições a que a protagonista comparece são tão burocráticas quanto a maneira como Chazelle as enquadra. À semelhança de pequenos esquetes de comédia, o filme investe em transições rápidas e na expressividade de Watson. Para além dos números musicais e do charme irresistível da produção, o que mais chama a atenção em sua atuação é a capacidade de fazer tanto com tão pouco, de transformar dez segundos ao som de “I Ran” ou alguns minutos sozinha com a própria voz em performances tão distintas e igualmente cativantes.

Mia é um projeto de atriz que dorme sob a imagem de Ingrid Bergman e passa a noite fantasiando com o sucesso

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Embora saiba aproveitar talentos específicos da intérprete (a habilidade para dublar músicas, por exemplo), o diretor-roteirista não parece dominar por completo o desenvolvimento de sua personagem. Entre as horas de ensaio na cafeteria e os testes de elenco, Mia vive uma sequência interminável de “manhãs seguintes”. Ela é um projeto de atriz que dorme sob a imagem de Ingrid Bergman e passa a noite fantasiando com o sucesso, com a oportunidade de ser descoberta por “alguém na multidão”, como uma faixa anuncia. “Você é a estrela” é o nome do mural pelo qual ela passa após ter o carro guinchado e imediatamente antes de conhecer Seb. Irônico, sim; sutil, jamais.

Se por um lado a intenção de acompanhar apenas de passagem essa fase pouco frutífera do início de carreira se realiza, por outro é frustrante que um filme que assume uma proposta tão centrada se contente em não investigar mais a fundo seus protagonistas. Além disso, por mais interessante que seja ver uma filmografia cheia de potencial se expandir para incluir uma figura feminina com motivações e questões próprias, ainda há um desequilíbrio flagrante entre as duas partes do casal.

Não é difícil notar que Chazelle possui mais proximidade com o universo do personagem masculino. O problema é que, embora beba de ambas as fontes (por ter uma carreira em cinema e uma inclinação ao mundo da música), o diretor acaba oferecendo um material mais amplo para Gosling. Seus diálogos com familiares existem em maior variedade e ocupam maior tempo de projeção, (ainda que o marketing superestime a importância dos coadjuvantes). Ainda que efetivamente não faça muito, aos olhos do filme ele ao menos parece fazer. É verdade que ele também se divide entre empregos provisórios, mas ao menos seu ofício ganha contornos mais detalhados no que diz respeito à preparação e execução — Seb aparece praticando piano em casa, traçando objetivos, depois provocando o chefe.

A paixão dos personagens é importante para o impulso inicial, não necessariamente por ser duradoura

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Em termos simples, o rapaz tem mais agência do que Mia, e mesmo as atividades corriqueiras em cena dão mais liberdade ao ator. Quando ele a motiva a agir, a decisão é consciente (o primeiro passo para que ela escreva a própria peça, por exemplo, é dele); quando o contrário ocorre, muitas vezes o estímulo é quase acidental (uma conversa dela entreouvida no telefone faz com que ele decida se juntar a uma banda). Em certo sentido, é como se a paixão dos personagens fosse importante por esse impulso inicial, não necessariamente por apontar para algo duradouro — “All that I need is this crazy feeling”, no fim das contas.

Basta analisar outros casos para tornar essa ideia mais clara. Quando eles se separam, ela surge sozinha, mas pouco se vê sobre seu processo de criação. Quando chega seu maior teste, ela narra as aventuras de uma tia, presa a uma história de um passado que sequer viveu. Já no epílogo, surpreendentemente, o filme continua sem nada a mostrar sobre sua carreira além de uma visita deslumbrada ao antigo café e um pôster com seu rosto na parede. Não se dizia nada autêntico ou pulsante sobre ela antes; não se diz cinco anos depois.

As composições de Justin Hurwitz criam ritmo que ganha força em momentos pontuais, acelerando ou freando a trama

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A visão de Chazelle sobre os personagens e esse desfecho é discutível e, assim como a forma como o diretor encara determinados fracassos e sucessos, parece mais ou menos cínica e ressentida dependendo de onde se observa. Esse é outro debate. De qualquer forma, o contraste é claro: a realização de Mia se materializa em filho e marido, enquanto a de Seb segue os rumos mais ou menos esperados.

Apesar dos percalços, o fato de que as duas metades do casal lidam com a mesma sensação de inadequação faz o filme funcionar. No curto diálogo em que consideram continuar juntos ou seguir separadamente, a referência usada para introduzir o assunto é de deslocamento: “Onde nós estamos?”, ela pergunta, referindo-se ao relacionamento. “Griffith Park”, ele responde, sugerindo uma reação leve e bem humorada à separação aparentemente inevitável. O esquema é parecido no instante em que Mia desperta do tédio da própria vida. No jantar com o então namorado, ela se vê fora de lugar, sem saída, antes de decidir fugir para encontrar o pianista.

O alerta é musical: a salvação ganha forma na melodia de “City of Stars”, que invade o restaurante por uma caixa de som. Quando investe nessa ideia e a incorpora à estrutura, fazendo com que as canções deem suporte às trajetórias dos personagens, Chazelle encontra sua maior força. As composições de Justin Hurwitz, especialmente o tema principal, criam um ritmo que ganha força em momentos pontuais, acelerando ou freando a trama quando necessário.

A troca de olhares final é o que há de mais real e tocante na produção, e a sequência inspirada em “Sinfonia de Paris”, o que há de mais mágico

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Além disso, todo acontecimento em “La La Land” antecipa o próximo. Em uma cena, Mia derruba café em uma blusa branca; na seguinte, encara um teste vestindo uma jaqueta de inverno. Em outro momento, Seb se despede da garota dizendo “Nos vemos no cinema” (“I’ll see you at the movies”), referindo-se ao trabalho dela como atriz, e o que vemos a seguir são os dois juntos em uma sessão de “Juventude Transviada” no antigo Rialto.

Mesmo em termos mais amplos, é possível notar como o verão, quando o casal vive seus dias mais felizes, já antecipa certos ruídos capazes de provocar esse distanciamento. Eles efetivamente se afastam, mas acabam reunidos por um telefonema, um vestígio da relação que ainda não havia desaparecido inteiramente. Há um senso de consequência muito bem construído aqui e, embora não dê tanta substância a suas figuras centrais separadamente, Chazelle demonstra ter atenção para enquadrar o relacionamento entre elas.

Por todos esses desequilíbrios, a sensação é de que o filme repete seus personagens e fica sempre entre o sonho e o cotidiano, a fantasia e a realidade, ensaiando mergulhos que só se concretizam em seu momento mais decisivo. A troca de olhares final é o que há de mais real e tocante na produção, e a sequência inspirada em “Sinfonia de Paris”, o que há de mais mágico. Para tratar de trechos como esse, porém, é preciso analisar mais atentamente a construção visual do longa.

Um sonho retrô

A estética de “La La Land” reflete essa relação entre o que se vive e o que se imagina. Se os números musicais são controlados e mantém os pés no chão (exceção feita literalmente a uma sequência), o dia a dia procura cores e movimentos mais expressivos, sempre um tom acima da realidade. As duas coisas se afetam mutuamente, e o filme se permite pequenos voos, mas logo retorna a suas bases mais estáveis. Chazelle propõe um esquema que favorece sua eficiência na direção: ele condensa o drama e se dedica a provocar imersão forjando uma aparência leve, mas rigorosamente controlada.

As referências de Chazelle englobam desde os musicais animados da Disney até as produções francesas dos anos 1960

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A câmera segue a mesma lógica, dançando uma melodia particular e flutuando pelos cenários cuidadosamente desenhados, charmosos em sua simplicidade. As inspirações são várias, e o diretor assume o tom de homenagem, “a ideia de que você pode reimaginar esses filmes antigos”. Suas referências englobam desde os musicais animados dos estúdios Disney até as produções francesas dos anos 1960 (“Cinderella” é o primeiro filme de que ele tem memória; “Os Guarda-Chuvas do Amor”, seu favorito de todos os tempos), mas a nostalgia ganha forma mesmo em relação à Hollywood dos anos 30, 40 e 50.

Ao voltar-se para essa atualização de época, o cineasta passa a enfrentar uma nova dualidade, agora entre o tradicional e o novo. O processo é absolutamente natural e comum em vários experimentos de gênero — há diversos exemplos recentes, sobretudo de faroestes. Em “La La Land”, a incursão no musical deve tanto ao sapateado e às performances de Fred Astaire e Ginger Rogers quanto a uma legião de clipes de música pop e comerciais de televisão, que frequentemente incorporam recursos como planos longos e coreografias coletivas — uma receita conhecida, mas de execução complicada.

Desde a abertura, é possível reconhecer algumas tendências no trabalho de Chazelle. A primeira delas é que o diretor procura criar fluidez em seu passeio pela trama, mas acaba sendo apenas ostensivo em várias ocasiões. Isso ocorre, por exemplo, quando o foco se alterna rapidamente entre Seb e Mia durante uma apresentação, chamando atenção para esse próprio movimento em vez de deixar que a ação e a música deem conta do recado. Acontece também na sequência na piscina, quando a câmera gira várias vezes em torno de si sem, de fato, registrar com clareza o que ocorre ao redor. Em outros momentos, como no número das quatro amigas em casa, a direção é mais suave, inclusive na maneira como interage com os espaços, e por isso encontra mais sucesso.

A segunda marca desse resgate de uma fatia da história do cinema que não deveria ter sido deixada para trás é o olhar sobre Hollywood. Disfarçada no título do filme e vista durante a hora mágica como se fosse uma pintura, Los Angeles não chega a se tornar personagem, mas existe sempre como subtexto. Em diversas cenas, como aquela em que Mia conversa com um profissional da indústria durante uma festa, o roteiro esboça uma crítica vazia e um tanto deslocada ao funcionamento do showbusiness, mas nunca passa disso. Felizmente, a maior parte dos comentários existe apenas como pano de fundo.

A solução da sequência final se mostra engenhosa e eficiente para uma história sobre ilusão e desilusão

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No restante do tempo, Chazelle se mostra ciente de que, para cada sonho realizado, L.A. oferece também centenas de frustrações — ele, preocupado com o abandono das coisas queridas, do jazz e dos musicais, sabe disso. No entanto, seu desfecho parece confirmar LA como a cidade dos sonhos e das estrelas. O roteiro rompe o casal, mas o tempo e uma longa sequência musical proporcionam um reencontro que os apresenta realizados. Se por um segundo eles flertam com o que poderia ter sido caso permanecessem juntos, no seguinte acenam um para o outro e reconhecem ter alcançado seus maiores objetivos, os quais só poderiam se concretizar ali e daquela maneira, por meio de som e música.

A solução se mostra engenhosa e eficiente para uma história sobre ilusão e desilusão. Em uma só tacada, dá ao público o que se espera de um passeio nostálgico por um gênero tradicionalmente popular e sugere uma alternativa ensolarada para um romance que caminhava para a melancolia. O saudosismo do número final é o que garante seu sucesso, mas ele não é exatamente libertador. Ao se voltar mais uma vez para o cânone e insistir nessa lógica nostálgica, “La La Land” parece não se importar em ser mais do que homenagem para se estabelecer na mesma prateleira das obras que tanto reverencia. Assim, a sensação final é agridoce como os destinos dos protagonistas: o presente é ótimo, mas não encanta tanto quanto as experiências de outros tempos.

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