- Cultura 31.mar.2017
Novo “Ghost in the Shell” mira no original, mas deixa boas ideias pelo caminho
Com Scarlett Johansson como protagonista, adaptação do anime investe na ação em vez da reflexão
Muitas das adaptações recentes têm o intuito de aproximar da realidade aquilo que os originais tratavam como fantástico. Também por isso, diversas vezes resultam em produtos de menor impacto quando comparados. A nova versão de “Ghost in the Shell”, traduzida como “A Vigilante do Amanhã”, segue um caminho ligeiramente diferente. Desde a sequência de abertura, o longa demonstra interesse nos conceitos básicos da mitologia e em suas imagens impossíveis — antes alcançáveis apenas por meio da combinação de técnicas de animação, mas agora realizáveis com atores de carne e osso e uma produção intensa.
Há trechos inteiros extraídos diretamente do anime de 1995. Momentos fundamentais, como o nascimento da protagonista e os mergulhos na própria consciência, recriam o material de origem passo a passo, entregando os sempre aguardados sinais de fidelidade aos fãs mais apaixonados. Em termos gerais, porém, a necessidade de ampliar o alcance da obra leva o diretor Rupert Sanders a extrapolar a simples atualização. No processo, mudanças significativas se impõem, e a maneira como o filme lida com tais demandas varia entre o certeiro e o problemático.
Por se tratar de um projeto de estúdio em Hollywood, com suas óbvias pretensões de blockbuster, é de se esperar que a ação ganhe maior destaque. Isso ocorre, ainda que não inteiramente: as sequências mais agitadas povoam a trama, sobretudo em seus pontos mais agudos, mas a direção também permite instantes de reflexão acerca de algumas das principais temáticas do original. Para cada combate em alta velocidade filmado em câmera lenta, o roteiro oferece duas ou três cenas em que o foco se volta para o aspecto psicológico dos personagens e o espaço que os cerca.
A construção de uma atmosfera particular em que real e virtual (ou real e sonho) se confundem é um dos grandes trunfos do “Ghost in the Shell” dos anos noventa — e, em larga medida, das melhores animações japonesas do período. Diante da difícil missão de erguer esse universo, Sanders e companhia se valem dos efeitos digitais para criar uma cidade de aparência artificial, que se relaciona com os componentes robóticos dos moradores ao mesmo tempo em que afeta o que há de humano neles. Os corpos sintéticos parecem adaptados; a consciência, inquieta, diz o contrário.
A necessidade de ampliar o alcance da obra leva o diretor Rupert Sanders a extrapolar a simples atualização do anime
Enquanto caminha nessa linha, “A Vigilante do Amanhã” mostra habilidade para colher elementos tanto das produções japonesas quanto de “Blade Runner” e “Matrix” — o que fecha um ciclo após quase duas décadas. No entanto, a partir do momento em que precisa adentrar a rede que conecta as mentes (ou seja, o mundo essencialmente virtual, mais sombrio e complexo), o longa derrapa. O ritmo mais imediatista assumido pela narrativa e o fato de que os acontecimentos são orientados pela ação, não pelo que se passa no imaginário da protagonista, são fatores que contribuem para o problema, mas não conseguem explicá-lo por completo. É preciso olhar além.
O roteiro deixa em segundo plano o aspecto mais instigante para investir em uma conspiração tradicional
Na nova versão, o Japão do futuro carrega traços mais definitivos, no sentido de que abrem menos espaço para a filosofia por trás das decisões tomadas a medida que a trama avança. Os questionamentos da Major Mira (Scarlett Johansson) sobre a própria essência, por exemplo, ocupam posição central durante a primeira metade do longa. Quando detalhes começam a responder parte de suas dúvidas, no entanto, seu “O que sou eu?” logo se transforma em “Quem sou eu?”, um indicativo de que o roteiro deixará em segundo plano seu aspecto mais instigante (a fronteira entre ser humano e máquina) para investir em uma conspiração mais tradicional (uma busca pela identidade roubada).
A cena em que a personagem principal conversa com Batou (Pilou Asbæk) no barco é um exemplo dessa mudança. Assuntos parecidos são discutidos aqui e no anime, mas o texto não busca a mesma profundidade nem o estilo contemplativo do original. Outro momento em que o filme abranda suas propostas em relação ao material de base é aquele em que a heroína encontra uma mulher (imagem abaixo) e decide conhecê-la, como se traduzisse a sequência da animação em que troca olhares com manequins em vitrines de lojas. A solução é interessante, mas revela uma criatura que não se enxerga com tanta clareza em outros seres fabricados e, assim como o filme, procura acima de tudo o contato com seu lado humano, de identificação mais fácil.
Ao optar pela via mais comportada, o filme fica no meio do caminho, sem alcançar as hipnotizantes transformações de Scarlett Johansson
Decisões do tipo incomodam, principalmente, porque não aproveitam como poderiam as qualidades de Johansson, escolhida para o papel em razão de uma persona cultivada ao longo de toda a carreira. Ao optar pela via mais comportada, “A Vigilante do Amanhã” fica no meio do caminho, sem alcançar a qualidade hipnotizante das transformações da atriz em “Sob a Pele” nem explorar a força bruta de filmes como “Lucy”. Em diversos sentidos, sua atuação segue a tônica da direção de Sanders: ambas são eficientes e donas de imaginações capazes de realizar certos saltos, mas sempre preocupadas demais em retornar ao chão.
No caso do diretor, chama a atenção o modo como essa funcionalidade atravessa suas ambições. É natural que histórias dessa natureza anunciem diferentes questões e invistam de fato em uma porção mais restrita delas. O problema surge quando a maior parte das ideias parece distribuída somente para inaugurar uma nova franquia, não pelo interesse, mesmo passageiro, no que elas evocam. O monólogo final parece confirmar essa lógica decepcionante, mas o coral que embala os créditos anuncia outro caminho possível: um universo reimaginado em que as vozes do anime de Mamoru Oshii ainda ecoam fortes, não como sombra ou mera sugestão.