- Cultura 28.jun.2017
“O Círculo” discute impacto da tecnologia sem grande inspiração
Roteiro atropela as próprias ideias e tem visão irregular sobre um futuro não muito distante
⚠️ AVISO: Contém spoilers
O impacto da tecnologia nos seres humanos é (e sempre será) fonte de inspiração para obras de ficção. Recorrente, o tema é encarado com interesse tanto por céticos quanto por esperançosos, donos de diferentes perspectivas sobre os mais diversos aspectos da vida individual, das relações entre pessoas e da organização da sociedade. Do ponto de vista narrativo, é possível ser genérico e elaborar metáforas amplas sobre o rumo das coisas; mirar em ideias específicas, de olho em seus efeitos particulares; ou ainda combinar elementos das duas abordagens — e é nessa coluna do meio que “O Círculo” parece se encaixar.
Adaptação do livro de mesmo nome de Dave Eggers, o filme de James Ponsoldt cria um universo em que uma corporação superpoderosa dita a maneira como uma significativa parcela da população vive e, partindo daí, passa a apresentar questões tão variadas quanto a privacidade dos usuários, o uso de ferramentas digitais não-governamentais em eleições e o policiamento por meio de câmeras instaladas ao redor do mundo. Se por um lado é elogiável que o filme tente alcançar algo além dos dilemas tradicionais, que se prendem a perguntas como “A tecnologia é boa ou ruim?” e “O virtual nos aproxima ou nos afasta?”, por outro é complicado notar que o próprio roteiro, escrito em colaboração entre autor e diretor, não dá conta do volume de ideias à disposição.
A jovem Mae Holland (Emma Watson) é quem guia o espectador nessa jornada. Recém-contratada pelo Círculo, ela tem contato em primeira mão com as inovações promovidas pela companhia. Além disso, está próxima de Bailey (Tom Hanks), o CEO carismático que defende suas propostas de forma determinada, com paixão e uma fachada de boas intenções. A receita não falha: a garota logo passa da desconfiança ao fascínio, embarcando no modo de vida defendido pela empresa antes de voltar a questionar essa adesão irrestrita que, na prática, significa a perda completa de sua privacidade.
Os ingredientes são fartos e férteis, mas os problemas não tardam a aparecer. Aparentemente indeciso sobre o verdadeiro norte de seu filme, Ponsoldt acrescenta conceito atrás de conceito ao enredo sem jamais ultrapassar a superfície. As situações debatidas servem como meros recursos para alavancar a trama e fazer com que a protagonista passe por diferentes estágios em sua relação com a companhia, sem que roteiro se disponha a avaliar as consequências de uma proposta antes de partir para a seguinte. Assim, por mais rica que cada uma delas seja, as discussões permanecem como acessórios ou, no pior dos casos, como panos de fundo para as viradas calculadas do roteiro.
Aparentemente indeciso sobre o verdadeiro norte de seu filme, Ponsoldt acrescenta conceitos ao enredo sem jamais ultrapassar a superfície
Tratamento semelhante é reservado aos personagens. Ainda que vejamos o posicionamento de Mae se transformar diante de nossos olhos, cumprindo o arco desenhado desde o início, a performance de Watson é um tanto monótona — em grande parte, vale reconhecer, porque o longa usa suas interações com outros personagens para propósitos definidos e depois as deixa de lado, o que impede que suas histórias (muitas delas promissoras, como aquela envolvendo os pais) se desenvolvam com maior tempo e naturalidade.
As relações com Mercer (Ellar Coltrane, de “Boyhood”) e Ty (John Boyega, de “Star Wars”) sofrem do mesmo mal: suas aparições são tão breves e dispersas que a decisão de depositar tamanha responsabilidade sobre eles em pontos-chave da trama parece incompreensível. Com relação a Hanks, trata-se, entre outras coisas, de uma questão de expectativas. Vê-lo como uma espécie de antagonista é raro, e seu rosto familiar consegue torná-lo convincente mesmo quando viola princípios básicos em nome de sua convicção. No entanto, ele pouco tem a fazer além de anunciar novas iniciativas, o que faz com que sua performance seja bastante limitada em termos de escopo de atuação.
Por mais rica que cada discussão seja, elas permanecem como acessórios ou, no pior dos casos, como panos de fundo para as viradas calculadas do roteiro
Nesse sentido, a falta de imaginação de Ponsoldt e companhia surge como um fator ainda mais relevante. Exceção feita a alguns close-ups marcantes nos trechos mais enérgicos das falas do CEO, a câmera acompanha as palestras de forma automática, pouco interessada em buscar alguma imagem reveladora ou detalhe mais cheio de vida naquele contexto, e isso enfraquece o poder das ideias em foco, que se tornam menos impactantes pelo modo como nos são apresentadas.
A falta de inventividade transparece também na maneira como a direção trabalha visualmente os recursos tecnológicos que fazem parte desse universo. Ao replicar em Mae a lógica de compartilhamento total de usuários compulsivos de redes sociais, o longa se mostra menos inspirado do que qualquer youtuber de médio porte. Nos segmentos em que acompanhamos seu cotidiano, são escolhidos ângulos pouco chamativos (incapazes de nos convencer do sucesso mundial dos vídeos, como o roteiro tenta sugerir) e a variação entre câmera subjetiva e objetiva (resultado de saltos entre a perspectiva da protagonista e a do espectador) não parece seguir critérios muito rígidos, o que gera alguma confusão.
Além disso, esse parece ser um novo exemplo de mau uso de mensagens de texto na tela — esse vídeo-ensaio lista uma série de casos semelhantes. Os comentários feitos em vários idiomas sobre a vida da garota, assim como as sequências em que vemos seu trabalho de atendimento virtual, logo no início, são pouco eficientes para produzir imersão ou nos comunicar novos pontos de vista e, assim, nunca passam de uma distração a mais.
“O Círculo” não tem êxito em armar debates sobre os próprios temas que traz para o centro das atenções
Do outro lado da balança, vale notar que o filme ao menos não se sustenta em longos diálogos explicativos. Em determinados momentos, é como se os personagens resistissem a oferecer mais do que o necessário para mover a trama. O efeito é positivo porque, enquanto Mae está imersa naquele modo de pensar, realmente cabe ao público avaliar as consequências das decisões tomadas, e as inovações criadas pela companhia conseguem algum espaço para respirar.
Na maior parte do tempo, porém, “O Círculo” não tem êxito em armar debates sobre os próprios temas que traz para o centro das atenções. A contradição é sintoma de um roteiro em que muitas perguntas sobre essa possível nova maneira de viver em sociedade morrem na largada e outras tantas sequer chegam a ser feitas. Para uma adaptação que se propõe a observar um futuro não muito distante, tratar do impacto real de tantas dessas ideias apenas de passagem parece especialmente imperdoável.