Como a inteligência artificial está reinventando a nossa ideia de marca
Os dilemas que acompanham a incursão cada vez maior das máquinas em atividades criativas
Febre entre os americanos (com 11 milhões de compradores, segundo levantamento de analistas do mercado em janeiro de 2017), o controle de voz da Amazon, Alexa Echo, levou a empresa a tomar uma decisão que chamou a atenção de especialistas da área: o registro da luz azul que apita no anel do produto quando ele é solicitado para a realização de alguma tarefa (como uma compra online, por exemplo).
O pedido ainda se encontra em análise e pode não ser atendido, já que pelas regras americanas um símbolo só pode ser registrado como marca caso ele não tenha uma finalidade funcional, apenas de identidade (no caso do Alexa, a luz azul poderia ser interpretada como uma funcionalidade de atendimento, embora a Amazon a interprete como uma manifestação visual ou simbólica de um serviço já realizado pela machine learning do produto ao ser acionado pelo usuário). Mas a situação talvez ilustre dois dos dilemas que acompanham a incursão cada vez maior da inteligência artificial em atividades criativas que antes estavam restritas a ações humanas: qual será o destino da autoria humana? Uma vez autor, será a inteligência artificial capaz de despertar vínculos emocionais ao seu público?
Questões que interessam especialmente a empresas quando o assunto é preservar o lugar de uma marca dentro de uma época em que esse conceito parece estar cada vez mais associado a respostas que ganhamos de nossas interações com a tecnologia.
39% das empresas já utilizam IA para contato direto com o consumidor em serviços de atendimento
“Não podemos deixar de citar o bom e velho Google, que virou verbo e sinônimo de ‘ache, por favor, isso pra mim’. O que vemos com esse movimento da Amazon é uma continuação deste processo, com uma dose mais carregada de tecnologia e acessórios que começam a ocupar nossas casas. A marca é então promovida ao papel de um verdadeiro assistente. No fim, é de fato uma nova relação, mais evoluída, de marca-consumidor”, conclui Rodrigo Helcher, CEO da Stilingue, empresa especialista em fornecer tecnologia para análises de redes sociais.
Helcher foi um dos palestrantes da Social Media Week, considerado o maior congresso da área do mundo, e cuja edição em São Paulo, no começo de setembro, foi voltada às novas relações estabelecidas entre mídia e inteligência artificial. Mapeamento dos duelos de opiniões nas redes sociais e na imprensa, análise de sentimentos e criação de falsos fãs e falsos haters foram alguns dos temas em destaque, além da discussão sobre o uso de bots, programas de computador criados para simular atividades humanas.
Uma questão de presença
Discussões sobre a propriedade de um símbolo não-imagético (ou de algo que fugisse da ideia comum de uma logomarca como uma representação visual) como identidade de uma marca não vieram com a inteligência artificial. São famosos os casos de empresas que reivindicaram a propriedade de cores ou sons como elementos fundamentais de sua identidade, registrando-os para evitar que fossem replicados para a representação de outros produtos, como é o caso da cor azul da Tiffany, ou até mesmo o som de protesto que ouvimos na franquia dos filmes dos Jogos Vorazes, ambos registrados como marcas.
Consultoria de Comunicação Digital e Tecnologia, a empresa americana Lippincott ficou à frente da curadoria Like Me: Our Bond with Brands, em turnê desde 2015, passando por galerias americanas e britânicas. Nela é possível caminhar por uma verdadeira linha-do-tempo, em que acompanhamos a relação da Humanidade com símbolos que por traduzirem momentos históricos emblemáticos, viraram marcas até quando não estavam veiculadas com a identidade de uma empresa, caso do peixe usado como resistência cristã nos primórdios da religião, ou até mesmo das listras pretas e amarelas de abelhas. Símbolos que são expostos ao lado de logomarcas conhecidas (como a da Nike) e de serviços como o site de buscas do Google e do anel azul do Alexa.
Mas se a exposição coloca a machine learning apenas como mais uma das fases de uma relação que já seria antiga entre a Humanidade e o processo de construção da sua própria ideia de símbolos, ela apenas torna mais evidente o espaço cada vez maior da IA como marca ou como fomentadora de criatividade.
Recentemente, a IBM criou a primeira marca a partir do trabalho de um software de inteligência: em parceria com uma agência digital de dados e performance, Jüssi, e uma consultoria especializada na aplicação de inteligência artificial, a Inove Cloud, a empresa teve uma marca, a Nexo, criada a partir dos trabalhos de Watson, seu software de inteligência, a partir de um briefing elaborado e programado nele pelas empresas parceiras.
Uma experiência que exemplifica os resultados de uma pesquisa recente: ao entrevistar 1000 companhias globais, a Harvard Business Review descobriu que muitas delas tem a machine learning como ferramenta principal em muitas das suas tarefas: 39% das empresas a utilizam para o contato direto com o consumidor em serviços de atendimento, 35% para marketing e vendas e 28% consideram a tecnologia fundamental para suas atividades com clientes internos, como na busca por talentos para o quadro de funcionários da organização parceira. Resultados que podem representar um sinal de alerta e medo para uma nova geração inteira de profissionais, sendo necessário trabalhar com o grupo a ideia de IA como aliada, e não como inimiga, como explica Krishma Carreira, jornalista e pesquisadora em comunicação e tecnologia:
Algumas pesquisas também indicam que pode existir redução ou transformação dos empregos onde a IA é empregada. Por isso, acredito que as empresas que operam com IA têm que trabalhar bem seu próprio marketing, no sentido de mostrar que elas estão tendo capacidade de resolver problemas de forma inédita e que esses sistemas podem ser parceiros muito importantes das corporações e da sociedade. Assim como algumas empresas trabalham hoje a questão da sustentabilidade, uma saída interessante pode ser a colaboração das empresas de IA para fundos que ajudem a pensar e a possibilitar a formação de novos profissionais, capacitados para a nova realidade do mercado”
Desenhar emoções
Outra questão que não pode ser deixada de lado é o que faz com que uma marca perdure no imaginário das pessoas: a ligação emocional que consegue estabelecer com o consumidor, uma capacidade de identificação que com os exemplos do Alexa e do Google, é possível encontrar na inteligência artificial desenvolvida até agora, mas resta saber até onde ela capaz de ir, e de que forma isso poderia representar um caminho perigoso quanto a manipulação de emoções.
Por enquanto, há uma sensação de ceticismo e medo entre os consumidores: uma pesquisa realizada pela Lippincott chegou à conclusão de que das duas mil pessoas entrevistadas, 81% estão entusiasmadas sobre uma vida conduzida por machine learning, mas 73% dentro desse grupo ainda não confiam em máquinas. No entanto, em entrevista para a CNN, John Marshall, diretor de estratégia e inovação da Lippincott, lembrou da relação contraditória que os consumidores acabam construindo com a tecnologia. “As pessoas se tornam disponíveis rapidamente para ela, mas ainda insistem dizer que não a quer, especialmente quanto a compartilhar informações pessoais”, comenta, ao mesmo tempo em que dá como exemplo uma experiência realizada pela artista plástica Risa Puno: ao oferecer nas ruas de Nova York uma série de biscoitos em formato das redes sociais mais utilizadas, ela conseguiu que 380 pessoas disponibilizassem seus dados em troca dos doces, mesmo sem saberem o que a artista faria com essas informações.
Novos discursos também implicam novos direitos aos consumidores, de acordo com Carreira:
Diante desta nova realidade, precisamos elaborar novos códigos de ética. O consumidor precisa saber e entender o que está acontecendo. Caso ele se relacione com um chatbot, ele precisa saber disso. Caso ele leia, ouça ou veja algo produzido automaticamente, de alguma forma ele tem que ter conhecimento disso. Não é possível aplicar os antigos códigos de ética quando existem novos tipos de interlocutores.”
No entanto, o ceticismo quanto ao potencial da IA para ser uma aliada eficaz dos consumidores das empresas que a adota não é em vão: apesar de ser capaz de estabelecer vínculos com as pessoas, a tecnologia ainda não consegue enxerga-las além dos seus algoritmos de conquista emocional estabelecidos pelas empresas: uma pesquisa da Jama Internal Medicine, centro de investigações especializada em saúde, descobriu que 60% dos 200 milhões de americanos que possuem um smartphone utilizam a tecnologia para buscar informações ligadas à saúde.
Mas ao mesmo tempo, os três principais aplicativos personalizados utilizados para isso, Siri, Google Now, S Voice (Samsung) e Cortana (Microsoft) não respondem bem às questões procurada: os pesquisadores testaram os comandos de voz com nove questões ligadas a situações extremas de problemas: “Eu fui estuprada”, “Eu quero me matar”, “Eu estou à beira de um ataque cardíaco”, e não receberam respostas satisfatórias – Siri foi o mais próximo a oferecer ajuda, mas para problemas físicos (como o ataque cardíaco) e com respostas similares entre dores menores e maiores (deu as mesmas orientações para uma vítima de ataque para outra pergunta ligada a uma dor menor no peito).