“Silêncio” é uma nova obra-prima de Martin Scorsese

“Silêncio” é uma nova obra-prima de Martin Scorsese

Andrew Garfield protagoniza adaptação do livro de Shusaku Endo, obsessão do diretor há décadas

por Virgílio Souza

⚠️ AVISO: Pode conter spoilers

Tudo o que envolve “Silêncio” demanda tempo e reflexão. O livro de Shūsaku Endō em que o filme se baseia foi lançado há pouco mais de meio século. Martin Scorsese, roteirista e diretor da adaptação, o recebeu de presente de um arcebispo duas décadas depois, na época do lançamento do controverso “A Última Tentação de Cristo”. Completou a leitura durante uma viagem de trem-bala entre Tóquio e Kyoto no ano seguinte, quando foi ao Japão para atuar em “Sonhos”, de Akira Kurosawa, mas não se via pronto para levar a produção adiante.

Sua vida seguiu e as dificuldades o acompanharam. Por um longo período, disputas judiciais, complicações relativas ao financiamento e o envolvimento em outros projetos afastaram o cineasta (e Jay Cocks, seu co-roteirista) do filme, efetivamente, mas jamais do material. Os grandes temas da obra original pareciam fortes demais para serem deixados de lado por alguém cuja carreira havia se pautado em muitas dessas mesmas ideias.

Martin Scorsese e Andrew Garlfield no set

Em diversos sentidos, o Scorsese que se vê aqui e agora é o mesmo de quase sempre. No nível mais básico, ele é aquele ítalo-americano criado na tradição católica da cidade de Nova York, seguindo procissões pelas ruas da comunidade e frequentando a missa aos domingos. A perspectiva encontrada após tanto tempo de busca, porém, corresponde a uma oportunidade sem igual em sua trajetória: a saga de jesuítas num país que proíbe o cristianismo se apresenta como uma arena especialmente preparada para questionamentos dessa natureza.

É difícil definir o que mais impressiona em tela: o visual, que encontra símbolos de fé nos ambientes menos propícios; o trabalho dos atores, de uma entrega emocional raras vezes vista; ou o poder das palavras de Endō, que levam o filme para outro plano sempre que surgem na narração. Quando a voz cortante do padre Ferreira (Liam Neeson) ganha volume e ecoa pela câmara até chegar aos ouvidos de Rodrigues (Andrew Garfield) e Garupe (Adam Driver), a sensação é de que se trata de um chamado divino — ao qual Scorsese responde prontamente.

Os símbolos religiosos não eram fartos no Japão da segunda metade do século 17. O governo proibia o uso de imagens cristãs, e a prática se resumia a cerimônias silenciosas realizadas em segredo no meio da madrugada. De modo semelhante, a perseguição aos padres impossibilitava confissões e afastava os fiéis de seus ritos mais básicos, muitas vezes levando ao abandono da crença.

Como retratar tantas provações de fé quando nem mesmo os personagens sabem exatamente a que se apegar, em termos materiais e espirituais?

Em sua terceira parceria com o fotógrafo Rodrigo Prieto, Scorsese usa um leque bastante amplo de recursos para inserir essa iconografia na narrativa. Cruzes são frequentemente vistas em detalhe, de modo a valorizar sua importância. Logo no primeiro contato com Mokichi (Shin’ya Tsukamoto), uma pequena peça serve de presente, enquanto o padre constata: “Os japoneses valorizam mais os sinais de fé do que a própria fé”. Em outros casos, a imagem se camufla nos cenários, como sugestão. Um exemplo, que os planos abaixo demonstram: a estrutura da cela em que Rodrigues é aprisionado, que ele abraça após associar sua jornada à de Cristo.

Ainda que mantenha os pés firmes no realismo, Scorsese filma a presença de Deus como ela se dá aos olhos do protagonista

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O aspecto clandestino do culto a Deus ganha corpo também na maneira como os espaços são iluminados. A luz do fogo, que os devotos usam para enxergar o que adoram na escuridão, cria uma associação imediata entre sagrado e profano. Já a névoa que encobre o inquisidor Inoue (Issei Ogata) inicialmente, antes de seu rosto ser revelado, faz com que ele chegue ao vilarejo como dúvida e depois permaneça como ameaça concreta.

Os padres são homens em uma terra desconhecida, e Ele, o Senhor, não parece oferecer conforto suficiente, o que mantém o contraste entre o que há de mais belo na natureza e o que há de mais feio na humanidade. A imensidão das paisagens ao redor dos protagonistas e sua expressividade, sobretudo na primeira metade do longa, tornam seus obstáculos ainda mais imponentes. O que sustenta a trama e assegura que Rodrigues continuará lutando, porém, são os instantes em que a graça divina se manifesta plenamente. Ainda que mantenha os pés firmes no realismo, incorporando figuras e situações narradas pela igreja aos contextos da época e do local, Scorsese filma a presença de Deus como ela se dá aos olhos do protagonista.

A atuação de Garfield tem muitos pontos fortes, principalmente a capacidade de transmitir sentimentos diversos diante das provações

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Momentos de elevação como aquele em que ele vê seu reflexo se misturar à face de Cristo na água fazem com que o filme transcenda o plano terreno. O mesmo ocorre, num sentido negativo, quando retornam à sua imaginação imagens de sofrimento (um corpo degolado e arrastado pela areia fina, outro afogado e largado às ondas). Rodrigues se depara com a própria mortalidade, mesmo preservando sua vontade de viver à imitação do filho de Deus.

A atuação de Garfield tem muitos pontos fortes, o principal deles sendo sua capacidade de transmitir sentimentos muito diversos enquanto resiste às provações. Seu personagem guia o olhar do espectador sempre com devoção, seja em direção à angústia ou à serenidade. São vários os modos que o ator encontra de nos imergir nesse embate entre convicção e consciência, mas os mínimos gestos se sobressaem. Quando observa uma cena de tortura, por exemplo, a câmera se fixa nele, e sua reação tipicamente cristã, de colocar as mãos sobre a boca e o nariz como se orasse, diz tudo o que precisa, mas não pode ser dito.

As semelhanças entre os protagonistas que ele interpreta em “Silêncio” e “Até o Último Homem” são difíceis de negar, mas o trabalho com Scorsese carrega mais nuances e, muito em função da natureza do confronto em questão, parece buscar conexões mais profundas. O fato de ter ao seu lado um elenco com nomes, rostos e histórias também contribui para sua performance.

No elenco japonês, repleto de atuações de destaque, quem mais impressiona é Yôsuke Kubozuka

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Há diferentes histórias de fé no longa. O jovem padre que se recusa a negar suas crenças parte ao lado de um rapaz que demonstra mais abertamente suas dúvidas em busca de um jesuíta que supostamente passou a viver longe da religião católica. No caminho, encontram todo tipo de relação com os ensinamentos que aprendeu, e Rodrigues se depara com uma nova forma de enxergar os ensinamentos que conhece.

No elenco japonês, repleto de atuações de destaque, quem mais impressiona é Yôsuke Kubozuka. As decisões tomadas por seu Kichijiro, um pescador que busca a redenção, conduzem o personagem principal a territórios antes inexplorados, fazendo com que o perdão seja sua principal preocupação. Assumindo contornos de diversos apóstolos, sobretudo de Judas e Pedro, inclusive por negar Cristo três vezes, ele é fundamental ainda para imprimir o peso da história nos ombros do padre. Suas lembranças, que ocasionalmente se confundem com sonhos, trazem à tona elementos de luz e escuridão dos quais não é possível se desviar — “Talvez ele também seja Jesus”, é o que afirma Scorsese.

Quando a resolução finalmente chega, não se ouve um pio, e Scorsese usa a câmera lenta para tornar o momento mais emblemático

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Outro aspecto relevante é a maneira como a trama se organiza, apresentando antagonistas e aliados, assim como as perspectivas defendidas por eles, à medida que avança em sua via crúcis. Os encontros com os cristãos locais são pautados por confusões de fé e idioma, o que Scorsese enfatiza ao trazer as conversas para o nível do chão — seguindo o costume dali, mas também concentrando a ação no que é dito em esquemas simples de plano e contraplano. Se as disparidades entre o que os europeus pregam e o que os japoneses cultuam motivam o diálogo, a não compreensão do idioma obriga os estrangeiros a permanecer calados, a saber quando intervir diante do que não compreendem.

Parece óbvio, mas o silêncio anunciado pelo título só existe em oposição ao barulho. Por essa razão, trechos em que suas vozes imperam sobre a dureza da realidade são tão marcantes: a sequência à beira-mar, quando um canto solitário dita o tom, talvez seja o melhor exemplo disso. A penitência constante, no entanto, faz voltarem sons que atormentam, principalmente quando a palavra de Deus não pode ser ouvida para afastá-los.

O que escutamos antes de Rodrigues tomar sua decisão crucial são lamentos, gritos de dor distantes, mas ainda presentes. Quando a resolução finalmente chega, não se ouve um pio, e Scorsese usa a câmera lenta para tornar o momento mais emblemático, prolongando sua duração. O efeito deixa o espectador igualmente mudo e não ensina como reagir: apenas oferece mais tempo para que uma nova reflexão aconteça. É o bastante.

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