- Cultura 10.mar.2017
“Silêncio” é uma nova obra-prima de Martin Scorsese
Andrew Garfield protagoniza adaptação do livro de Shusaku Endo, obsessão do diretor há décadas
⚠️ AVISO: Pode conter spoilers
Tudo o que envolve “Silêncio” demanda tempo e reflexão. O livro de Shūsaku Endō em que o filme se baseia foi lançado há pouco mais de meio século. Martin Scorsese, roteirista e diretor da adaptação, o recebeu de presente de um arcebispo duas décadas depois, na época do lançamento do controverso “A Última Tentação de Cristo”. Completou a leitura durante uma viagem de trem-bala entre Tóquio e Kyoto no ano seguinte, quando foi ao Japão para atuar em “Sonhos”, de Akira Kurosawa, mas não se via pronto para levar a produção adiante.
Sua vida seguiu e as dificuldades o acompanharam. Por um longo período, disputas judiciais, complicações relativas ao financiamento e o envolvimento em outros projetos afastaram o cineasta (e Jay Cocks, seu co-roteirista) do filme, efetivamente, mas jamais do material. Os grandes temas da obra original pareciam fortes demais para serem deixados de lado por alguém cuja carreira havia se pautado em muitas dessas mesmas ideias.
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Martin Scorsese e Andrew Garlfield no set
Em diversos sentidos, o Scorsese que se vê aqui e agora é o mesmo de quase sempre. No nível mais básico, ele é aquele ítalo-americano criado na tradição católica da cidade de Nova York, seguindo procissões pelas ruas da comunidade e frequentando a missa aos domingos. A perspectiva encontrada após tanto tempo de busca, porém, corresponde a uma oportunidade sem igual em sua trajetória: a saga de jesuítas num país que proíbe o cristianismo se apresenta como uma arena especialmente preparada para questionamentos dessa natureza.
É difícil definir o que mais impressiona em tela: o visual, que encontra símbolos de fé nos ambientes menos propícios; o trabalho dos atores, de uma entrega emocional raras vezes vista; ou o poder das palavras de Endō, que levam o filme para outro plano sempre que surgem na narração. Quando a voz cortante do padre Ferreira (Liam Neeson) ganha volume e ecoa pela câmara até chegar aos ouvidos de Rodrigues (Andrew Garfield) e Garupe (Adam Driver), a sensação é de que se trata de um chamado divino — ao qual Scorsese responde prontamente.
Os símbolos religiosos não eram fartos no Japão da segunda metade do século 17. O governo proibia o uso de imagens cristãs, e a prática se resumia a cerimônias silenciosas realizadas em segredo no meio da madrugada. De modo semelhante, a perseguição aos padres impossibilitava confissões e afastava os fiéis de seus ritos mais básicos, muitas vezes levando ao abandono da crença.
Como retratar tantas provações de fé quando nem mesmo os personagens sabem exatamente a que se apegar, em termos materiais e espirituais?
Em sua terceira parceria com o fotógrafo Rodrigo Prieto, Scorsese usa um leque bastante amplo de recursos para inserir essa iconografia na narrativa. Cruzes são frequentemente vistas em detalhe, de modo a valorizar sua importância. Logo no primeiro contato com Mokichi (Shin’ya Tsukamoto), uma pequena peça serve de presente, enquanto o padre constata: “Os japoneses valorizam mais os sinais de fé do que a própria fé”. Em outros casos, a imagem se camufla nos cenários, como sugestão. Um exemplo, que os planos abaixo demonstram: a estrutura da cela em que Rodrigues é aprisionado, que ele abraça após associar sua jornada à de Cristo.
Ainda que mantenha os pés firmes no realismo, Scorsese filma a presença de Deus como ela se dá aos olhos do protagonista
O aspecto clandestino do culto a Deus ganha corpo também na maneira como os espaços são iluminados. A luz do fogo, que os devotos usam para enxergar o que adoram na escuridão, cria uma associação imediata entre sagrado e profano. Já a névoa que encobre o inquisidor Inoue (Issei Ogata) inicialmente, antes de seu rosto ser revelado, faz com que ele chegue ao vilarejo como dúvida e depois permaneça como ameaça concreta.
Os padres são homens em uma terra desconhecida, e Ele, o Senhor, não parece oferecer conforto suficiente, o que mantém o contraste entre o que há de mais belo na natureza e o que há de mais feio na humanidade. A imensidão das paisagens ao redor dos protagonistas e sua expressividade, sobretudo na primeira metade do longa, tornam seus obstáculos ainda mais imponentes. O que sustenta a trama e assegura que Rodrigues continuará lutando, porém, são os instantes em que a graça divina se manifesta plenamente. Ainda que mantenha os pés firmes no realismo, incorporando figuras e situações narradas pela igreja aos contextos da época e do local, Scorsese filma a presença de Deus como ela se dá aos olhos do protagonista.
A atuação de Garfield tem muitos pontos fortes, principalmente a capacidade de transmitir sentimentos diversos diante das provações
Momentos de elevação como aquele em que ele vê seu reflexo se misturar à face de Cristo na água fazem com que o filme transcenda o plano terreno. O mesmo ocorre, num sentido negativo, quando retornam à sua imaginação imagens de sofrimento (um corpo degolado e arrastado pela areia fina, outro afogado e largado às ondas). Rodrigues se depara com a própria mortalidade, mesmo preservando sua vontade de viver à imitação do filho de Deus.
A atuação de Garfield tem muitos pontos fortes, o principal deles sendo sua capacidade de transmitir sentimentos muito diversos enquanto resiste às provações. Seu personagem guia o olhar do espectador sempre com devoção, seja em direção à angústia ou à serenidade. São vários os modos que o ator encontra de nos imergir nesse embate entre convicção e consciência, mas os mínimos gestos se sobressaem. Quando observa uma cena de tortura, por exemplo, a câmera se fixa nele, e sua reação tipicamente cristã, de colocar as mãos sobre a boca e o nariz como se orasse, diz tudo o que precisa, mas não pode ser dito.
As semelhanças entre os protagonistas que ele interpreta em “Silêncio” e “Até o Último Homem” são difíceis de negar, mas o trabalho com Scorsese carrega mais nuances e, muito em função da natureza do confronto em questão, parece buscar conexões mais profundas. O fato de ter ao seu lado um elenco com nomes, rostos e histórias também contribui para sua performance.
No elenco japonês, repleto de atuações de destaque, quem mais impressiona é Yôsuke Kubozuka
Há diferentes histórias de fé no longa. O jovem padre que se recusa a negar suas crenças parte ao lado de um rapaz que demonstra mais abertamente suas dúvidas em busca de um jesuíta que supostamente passou a viver longe da religião católica. No caminho, encontram todo tipo de relação com os ensinamentos que aprendeu, e Rodrigues se depara com uma nova forma de enxergar os ensinamentos que conhece.
No elenco japonês, repleto de atuações de destaque, quem mais impressiona é Yôsuke Kubozuka. As decisões tomadas por seu Kichijiro, um pescador que busca a redenção, conduzem o personagem principal a territórios antes inexplorados, fazendo com que o perdão seja sua principal preocupação. Assumindo contornos de diversos apóstolos, sobretudo de Judas e Pedro, inclusive por negar Cristo três vezes, ele é fundamental ainda para imprimir o peso da história nos ombros do padre. Suas lembranças, que ocasionalmente se confundem com sonhos, trazem à tona elementos de luz e escuridão dos quais não é possível se desviar — “Talvez ele também seja Jesus”, é o que afirma Scorsese.
Quando a resolução finalmente chega, não se ouve um pio, e Scorsese usa a câmera lenta para tornar o momento mais emblemático
Outro aspecto relevante é a maneira como a trama se organiza, apresentando antagonistas e aliados, assim como as perspectivas defendidas por eles, à medida que avança em sua via crúcis. Os encontros com os cristãos locais são pautados por confusões de fé e idioma, o que Scorsese enfatiza ao trazer as conversas para o nível do chão — seguindo o costume dali, mas também concentrando a ação no que é dito em esquemas simples de plano e contraplano. Se as disparidades entre o que os europeus pregam e o que os japoneses cultuam motivam o diálogo, a não compreensão do idioma obriga os estrangeiros a permanecer calados, a saber quando intervir diante do que não compreendem.
Parece óbvio, mas o silêncio anunciado pelo título só existe em oposição ao barulho. Por essa razão, trechos em que suas vozes imperam sobre a dureza da realidade são tão marcantes: a sequência à beira-mar, quando um canto solitário dita o tom, talvez seja o melhor exemplo disso. A penitência constante, no entanto, faz voltarem sons que atormentam, principalmente quando a palavra de Deus não pode ser ouvida para afastá-los.
O que escutamos antes de Rodrigues tomar sua decisão crucial são lamentos, gritos de dor distantes, mas ainda presentes. Quando a resolução finalmente chega, não se ouve um pio, e Scorsese usa a câmera lenta para tornar o momento mais emblemático, prolongando sua duração. O efeito deixa o espectador igualmente mudo e não ensina como reagir: apenas oferece mais tempo para que uma nova reflexão aconteça. É o bastante.