- Criatividade 4.dez.2017
O futuro da criatividade não é “data-driven”
Em tempos de dominância do discurso racional e busca incessante por performance, precisamos reencontrar as raízes emocionais da nossa profissão
Nos últimos 15 anos, como criador e editor-chefe do B9, aprendi muitas coisas. Mas quero aproveitar o recente aniversário do site para falar da pior coisa que aprendi nesse período: o cinismo.
Fundei o B9 em 2002, por conta de uma paixão. Paixão pelas ideias, pela propaganda, pela comunicação, e, por que não, pela arte (sim, publicidade pode ser arte, mas isso é pauta pra outro textão.) Porém, essa paixão foi se perdendo aos poucos, ao ponto de que leio textos mais antigos que escrevi e não me reconheço neles. Me pergunto: onde foi parar aquele cara romântico e entusiasmado pela profissão?
Valorizo o meu senso crítico, é claro, construído e desconstruído diversas vezes ao longo dessa década e meia. E sou orgulhoso do faro que me faz abrir às pressas o editor de texto do B9 para compartilhar uma boa campanha que acabei de receber. Mas essa sensação, hoje em dia, só vem se conseguir vencer muito cinismo e questionamentos, pois perdi a capacidade de confiar nos discursos, nos releases que recebo, nas afirmações de profissionais, nas promessas das agências. O nosso maior problema (sim, o meu e o seu) não é um “jornalista” independente da área ter ficado cínico, mas o mesmo sentimento ter sido despertado nos clientes e empresas.
Passa pelo fato, claro, de que o mercado de agências tem um histórico de construção de desconfiança. Não à toa vive uma crise sem precedentes, em que impérios perigam desmoronar frente a concorrência das consultorias. Essas, aliás, que fizeram o caminho contrário. Consultorias possuem um histórico de construção de confiança e de gestão de recursos que agências nunca tiveram. Agências foram perdulárias, displicentes, e muitas vezes irresponsáveis com a marca do cliente.
Em outro front, o avanço da tecnologia – capitaneada pela internet – adentrou como num blitzkrieg as searas monopolizadas do marketing. É verdade que a transformação digital trouxe e continua trazendo oportunidades excitantes, mas também alterou profundamente a ênfase da nossa profissão.
Trocamos a intuição criativa e as emoções humanas pelos resultados mensuráveis e previsíveis.
Se antes as campanhas tocavam as emoções e deixavam ressonâncias de longo prazo, agora elas precisam simplesmente atender ao botão de emergência do marketing: o ROI, que é apertado sempre que alguém troca a coragem pelo conforto. Se a matemática promete resultados, quem precisa de criatividade, não é mesmo? A escolha pelo que é certo e garantido sempre soou natural.
Continuamos admirando a abundância de ideias icônicas e que entraram para a cultura popular da era “Mad Men”. Hoje, porém, temos nos contentado com publicidade invasiva e irrelevante, banners repetitivos, emails indesejados e os ridículos comerciais de seis segundos (tem até os de três, dizem por aí que vai ser a salvação da propaganda).
Resumindo: A tecnologia, que revoluciona tantas áreas, transformou publicitários em gatunos. Estamos nos esgueirando na calada da noite, entre o conteúdo que as pessoas querem consumir, para roubar alguns segundos de atenção e piscar rapidamente uma mensagem desimportante. É o que chamamos de adnausea.
É claro que a criatividade continua existindo. Aqui no B9, por exemplo, publicamos exemplos diários de resistência. Mas ela se tornou consideravelmente mais rara e menos corajosa. Análise, mensuração e dados frios sobrepujaram qualquer outro aspecto, e falar em intuição no meio de tantas planilhas e números geralmente te faz soar como um lunático (na melhor das hipóteses).
Alguém capaz de se conectar com as pessoas através da emoção e da humanidade sempre será indispensável
Big data, sistemas programáticos de distribuição, analises preditivas, inteligência artificial, reconhecimento de voz, machine learning. São todas buzzwords importantes para nosso trabalho, adicionam camadas que abrem horizontes. Porém, elas devem ser encaradas como meios para um fim, para eliminar o trabalho pesado e liberar nosso tempo e esforço para pensar no que realmente importa.
Que fique claro, não sou um ludista. A matemática é poderosa, claro, mas não compreende tudo. O discurso racional é, na verdade, contraproducente, pois estamos tentando linearizar e encaixotar um mundo cada vez mais não linear e diverso.
É por isso que, nesse novo cenário em que a tecnologia do marketing tende a obscurecer as suas raízes emocionais, se faz necessário reencontrarmos um equilíbrio. E não estou falando apenas em fazer rir ou chorar, mas num compromisso com uma ampla jornada emocional. Precisamos abraçar novamente o estranhamento, a dor, os sentimentos negativos, e voltar a assumir riscos em busca de criar uma impressão autêntica e duradoura de valor da marca nas pessoas. Combater o cinismo, que aprendi da pior maneira possível e afeta toda a indústria, com criatividade.
Não importa qual modelo de negócio vai sobreviver nos próximos 15 anos, a nossa função como comunicadores continuará sendo vital. Seja na agência, na empresa, ou na consultoria: alguém capaz de se conectar com as pessoas através da emoção e da humanidade será indispensável.
É o que tenho chamado de Criatividade Punk, inspirado por uma declaração de Guillermo Del Toro, um dos meus cineastas favoritos, e que assumi como compromisso particular para reencontrar minha paixão perdida e para definir nossas linhas editoriais daqui em diante. Recomendo que tantos profissionais criativos enfurnados em salas de reunião nesse momento façam o mesmo.
“Vivemos num mundo estranho onde o ódio e o cinismo são considerados discursos inteligentes, mas falar sobre sentimentos pode soar como um idiota. A emoção é o antídoto, é o novo punk.”
Pra ficar em um breve exemplo, pense na Netflix. A empresa big data mais conhecida (e amada) da atualidade. Podemos atribuir parte de seu sucesso ao funcionamento quase impecável da tecnologia de streaming que criaram? Claro que sim. E a entrega de conteúdo e sugestões personalizadas para cada usuário? Também, um fator importante.
Mas o que faz a Netflix ser adorada não reside nos códigos de programação e algoritmos, e sim nas histórias que escolheram contar. A empresa atinge o coração das pessoas apostando em narrativas, emoções e, principalmente, dando liberdade aos seus criadores.
Essa tem sido a simbiose perfeita da matemática digital com a magia emocional que podemos testemunhar todos os dias em nossas casas e dispositivos. Com esse exemplo tão presente, não é possível que a gente siga acreditando em construção de marca com base exclusivamente em planilhas e taxas que provam apenas que, quando muito, interrompemos a diversão de alguém.
É verdade que só a tecnologia permite que marcas se transformem em plataformas, pavimentando caminhos para aperfeiçoar a tão sonhada e desejada experiência do consumidor. Porém, até as mais digitais no TOP 10 de marcas mais valiosas da Interbrand, como Apple, Google, Amazon, Samsung e Facebook, investem em discursos emotivos consistentes.
Para mim, são lembretes constantes da ideologia que fundou a publicidade moderna, nos anos 1950, e que tanto precisa ser resgatada, certificada inclusive pelos últimos estudos da neurociência. Segundo Antonio Damasio, não somos máquinas racionais que sentem, mas máquinas de sentimentos que pensam. Portanto, tudo bem se a sua ideia não for exatamente data-driven. Pensar com o seu bom e velho cérebro também pode trazer muitos e duradouros resultados.