“The Post”: um drama de época para refletir sobre o presente

“The Post”: um drama de época para refletir sobre o presente

Passado nos anos 1970, filme reúne Steven Spielberg, Meryl Streep e Tom Hanks em defesa da liberdade de imprensa

por Virgílio Souza

O livro “A Companion to Steven Spielberg”, parte de uma série dedicada às obras de importantes nomes do cinema, reúne artigos sobre diferentes aspectos da filmografia do diretor norte-americano, provavelmente o mais aclamado de sua geração. A certa altura do capítulo “You Must Remember This”, que aponta as diferenças entre “Munique” e seus outros dramas históricos, Lester D. Friedman faz algumas observações que são relevantes quando pensamos em “The Post: A Guerra Secreta”, trabalho mais recente do cineasta.

Segundo o autor, esses filmes “permitem que gerações de espectadores que nunca vivenciaram um acontecimento diretamente participem dele na imaginação” e “revelam tanto sobre o período em que foram feitos quanto sobre o período que retratam”. São duas características que soam quase obrigatórias para o gênero, mas que poucos realizadores integram conscientemente e com tanta qualidade às suas narrativas. Não é coincidência, portanto, que Spielberg tenha decidido abordar a defesa da liberdade de imprensa no atual contexto político dos Estados Unidos, nem que no centro da resistência esteja uma mulher em posição de comando — uma das raras protagonistas femininas em sua longa trajetória na função.

Não é coincidência que Spielberg tenha decidido abordar a defesa da liberdade de imprensa no atual contexto político dos Estados Unidos

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“The Post” se passa em 1971, mas conversa diretamente com 2017. Na trama, somos apresentados a Katharine Graham (Meryl Streep) em um momento decisivo. À frente de um jornal que tenta se provar relevante e diante dos ataques do governo Richard Nixon contra a imprensa, que causam dano até no gigante The New York Times, ela precisa decidir se publica ou não segredos comprometedores sobre o envolvimento histórico do país na Guerra do Vietnã. No próprio meio, porém, enfrenta resistência para ser ouvida, sendo frequentemente ignorada ou confrontada sem propósito pelos homens que cruzam seu caminho.

As reuniões a que Kay comparece, seja para discutir a viabilidade das matérias sobre o Pentágono ou tentar garantir o financiamento da redação, são marcadas pelo desgaste que causam. Nelas, Spielberg enche a tela de rostos masculinos que cercam a personagem por todos os lados e a impedem de ocupar devidamente seu espaço. Mesmo quando ela deixa a sala, o incômodo permanece: as vozes dos sujeitos que a contestaram ainda podem ser ouvidas de dentro de seu escritório, ao passo que uma celebração com amigos em casa é interrompida pelo chamado ao telefone para uma ligação importante.

Spielberg enche a tela de rostos masculinos que cercam a personagem por todos os lados e impedem a protagonista de ocupar devidamente seu espaço

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Situações como essas são tão comuns no roteiro de Liz Hannah (estreante em longas) e Josh Singer (de “Spotlight”) quanto os debates sobre liberdade e democracia. Os obstáculos forçam a protagonista a se posicionar de outra forma para assegurar que suas decisões sejam levadas adiante, e Streep adapta sua postura com perfeição. Com o tempo, a câmera de Janusz Kaminski (antigo colaborador de Spielberg) também passa a enquadrá-la cada vez mais de frente, num ângulo de baixo para cima e com um movimento lento de aproximação que não deixa dúvidas com relação à sua condição de liderança. Além disso, trechos como aquele em que uma multidão de mulheres de todas as idades a recepciona na saída de um tribunal ajudam a criar um forte contraste com seu isolamento no início do longa — sinal de uma mudança que se anuncia.

Steven Spielberg no set

Quem a acompanha na batalha é Ben Bradlee (Tom Hanks), editor do Post no período e responsável por construir a ponte entre a dona do jornal e a redação. Quando estão juntos em cena, é curioso notar como Spielberg escolhe deixá-los à vontade, adiando cada corte o máximo possível e permitindo que interrompam as falas um do outro antes que uma decisão coletiva apareça. Grandes atores que são, eles dão corpo às principais ideias do diretor e conferem um senso de responsabilidade indispensável para sua proposta. São as convicções da dupla que colocam a trama em movimento, abrindo espaço para os demais membros de um elenco recheado, e que permitem que o filme dê atenção para outro aspecto fundamental na narrativa: o exercício do jornalismo.

As máquinas de datilografia e as prensas são objetos estranhos para as gerações mais jovens, mas a dedicação de Spielberg ao processo de investigação e elaboração das matérias torna tudo bastante natural, como se fosse parte do nosso cotidiano — seguindo a mesma lógica — ainda hoje. A atenção ao procedimento, auxiliada também pela reconstrução detalhada da época, coloca o espectador próximo da ação. Assim, “correr atrás da notícia” se torna mais que uma simples expressão lançada ao vento, mas a definição do que Graham e Bradlee, com o espectador a tiracolo,  fazem ao lado do repórter Ben Bagdikian (Bob Odenkirk) e companhia.

Grandes atores que são, Streep e Hanks dão corpo às principais ideias do diretor e conferem um senso de responsabilidade indispensável para sua proposta

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Nesse sentido, as semelhanças com “Todos os Homens do Presidente” são claras. Os dois filmes são irmãos tematicamente e se valem de uma série de elementos comuns, como a relação dos jornalistas com suas fontes e a necessidade de oferecer proteção aos informantes. Ainda assim, as decisões de Spielberg parecem querer imprimir em “The Post” um ritmo acelerado, que o deixa mais próximo da velocidade do cinema contemporâneo. A imersão nesse universo é alcançada pelo trabalho de montagem, através de sequências que enfileiram imagens e sons particulares — os dedos que batem nas teclas apressadamente, o rolo de papel que se arrasta pelo carpete da redação, os vários telefones que tocam simultaneamente trazendo novas pistas. Falta, porém, um vínculo maior entre as ações do diário e as reações da opinião pública, que são frequentemente citadas em diálogos, mas vistas apenas em um ou dois trechos curtos.

“The Post” vai além de um registro de outra época, é um ponto de partida para uma discussão mais ampla sobre o funcionamento das instituições

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Algo parecido pode ser dito sobre as famílias dos personagens principais. Kay e a filha, Lally (Alison Brie), e Ben e a esposa, Tony (Sarah Paulson), têm alguns momentos de privacidade em que colocam para fora suas dúvidas e temores, mas essas relações praticamente somem no restante do tempo, o que torna suas participações um tanto deslocadas do entorno. Spielberg tem melhor sorte quando toma o ambiente doméstico como base para explicitar as diferenças entre homens e mulheres naquela sociedade, separando os grupos após um jantar com dois planos seguidos carregados de significado.

Seu maior acerto atrás das câmeras, no entanto, surge quando o filme caminha para o desfecho e retoma suas pretensões iniciais. O momento decisivo é aquele em que vemos a silhueta de Nixon, registrada à distância pela janela da Casa Branca, e ouvimos suas gravações originais, que dão o tom da ameaça à liberdade de imprensa. Combinação rara de atemporalidade e especificidade histórica, a junção das duas coisas define “The Post” como algo além de um registro de outra época a ser conhecido, um ponto de partida para uma discussão mais ampla sobre o funcionamento das instituições. Isso é algo que Spielberg tem feito há tempos — e de modo mais direto, mas não menos brilhante, desde “Lincoln” e “Ponte de Espiões”.

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