- Cultura 28.jan.2018
Em “O Artista do Desastre”, nova geração da comédia americana presta homenagem a seu ídolo
Filme de James Franco consagra Tommy Wiseau como grande herói dos derrotados
Lançado em 2003, “The Room” foi na época de seu lançamento um desastre absoluto. O filme independente, cuja produção, direção e roteiro era assinada pelo desconhecido Tommy Wiseau (também responsável pelo papel principal da história), rendeu menos de dois mil dólares nas duas semanas que esteve em cartaz em dois cinemas de Los Angeles, um valor muito abaixo dos quase seis milhões gastos por seu idealizador na materialização de seu passion project. Mas o prejuízo financeiro foi nada comparado à qualidade da obra, em tantos sentidos uma calamidade tão gigantesca que até hoje ele é tido por muitos como um dos (senão o) piores filmes de todos os tempos.
O erro, porém, aos poucos se converteu em acerto, conforme o longa foi agremiando fãs em torno de seu valor escancaradamente duvidoso e começou a ocupar espaços nas populares sessões da meia-noite. Da noite para o dia, o filme deixou de ser um drama de câmara equivocado em todas as suas pretensões e passou a ser encarado como uma comédia de erros de produção brilhante, e tanto Wiseau quanto sua criação se tornaram cultuados por um grupo muito apaixonado de seguidores, que o tornaram “vencedores” pelos meios mais equivocados. A redenção de “The Room” veio de forma inesperada pelo humor involuntário de sua narrativa e atuações, um desconforto cômico que parece ter atingido de surpresa uma vindoura geração de comediantes que na época se apresentavam como meros espectadores.
É justo este impacto geracional que se faz notar pelas bordas em “O Artista do Desastre”, que busca mostrar os bastidores da obra que deixou o posto de patinho feio para ser um cisne entre os derrotados. Agora crescidos e no controle de alguns dos mecanismos de Hollywood, a nova classe da comédia do país parece se reunir no filme dirigido por James Franco para prestar homenagem ao que aparenta ser um de seus pilares de formação, uma tendência observada tanto no número de humoristas presentes no elenco e produção quanto nas declarações feitas na introdução do longa por nomes como Kristen Bell, Adam Scott e Kevin Smith – mesmo pessoas foras deste circuito aparecem para comentar de Wiseau, como J.J. Abrams, um dos atuais todo poderosos da Lucasfilm.
Não chega a ser uma surpresa, então, que Franco encare a história da concepção de “The Room” como uma história de sucesso às avessas, conduzida dentro da lógica colaborativa ao qual outras produções de sua geração se dispõem a realizar. Franco se escala como Wiseau e coloca o irmão Dave para viver Greg Sestero – colaborador frequente do artista e também autor do livro de memórias homônimo que serve de base ao longa – para dar vida à mais uma comédia de camaradagem e bromance tradicional nos dias de hoje, uma agora que tem como grande diferencial o fato de ser inspirado em fatos reais. Partindo do momento no qual os dois protagonistas se conhecem e contada do ponto de vista de Sestero, “O Artista do Desastre” há de buscar na trajetória dos dois atores dentro de Hollywood uma trama que passa em igual proporção pela tragédia típica da narrativa do sonho americano e a comédia de erros de uma produção fadada ao fracasso imediato.
Dentro desta proposta, a direção dada por Franco ao roteiro de Scott Neustadter e Michael H. Weber é bastante clara no seu ato de reverência perante a Wiseau, uma atitude que logo se prova das mais equivocadas em caráter objetivo. Embora trate tudo como uma grande sátira à lógica de sucesso da indústria hollywoodiana e interprete Tommy com todo o ar de caricatura que tem direito, o diretor no fundo não encara seu protagonista maior como objeto de estudo e sim como figura a ser celebrada, consagrada como um artista atormentado que encontrou no fracasso a fórmula para a redenção e o estrelato.
Franco mostra-se disposto a reforçar os traços caricatos de Wiseau e apresentar sua história como outra fábula de Hollywood, obstruindo qualquer tipo de desconstrução maior de sua personalidade no mínimo problemática. Quando por exemplo o protagonista entra em conflito na trama com a namorada de Sestero (Allison Brie, esposa de Dave Franco na vida real e mais um desses pequenos indícios da camaradagem envolvida na produção), sua postura evidencia muito da misoginia que ele deixaria implícita depois em sua “obra-prima”, mas o longa prefere tornar este lado do personagem em mero alicerce para a crise de seu bromance com Greg. Não há espaço para questionamentos na produção: o que importa mesmo é o olhar de admiração sob uma trajetória de dois fracassados rumo a um erro de sucesso.
A direção de Franco é bastante clara no ato de reverência perante a figura de Wiseau, uma atitude que logo se prova das mais equivocadas
Convertido posteriormente em redenção a Wiseau, este equívoco na abordagem seria em outros termos fatal a “O Artista do Desastre”, mas, tal qual a obra da qual conta sua história, são os resultados involuntários que Franco alcança que acabam por abrir espaço para seu filme crescer. Pois ainda que sua história seja contada em claro tom de reverência, existe uma narrativa gerada em cima da sobreposição acidental dos narcisos feridos de Wiseau e de Franco – este último correndo solto em todos os aspectos da produção, seja na atuação performática e direcionada à temporada de prêmios ou no desafio auto-imposto de refilmar partes de “The Room” – que acaba por prevalecer como central aos “grandes feitos” de Tommy e Greg, uma que traça paralelos da história dos dois atores com o próprio histórico da comédia enquanto gênero.
Existe uma narrativa acidental gerada em cima da sobreposição dos narcisos feridos de Wiseau e de Franco que impulsiona o longa
Wiseau via no ato de tomar as rédeas do próprio destino e assumir o comando de um filme milionário um meio para se por entre os grandes nomes e produções de prestígio de sua época, uma tentativa de pegar carona na popular figura do auteur para se ver rumo ao estrelato que então lhe era barrado por sua figura assustadora. Franco não demora a usar dessa motivação como elemento de composição – quando os dois protagonistas chegam a Los Angeles, por exemplo, eles passam por uma sessão especial de “Shakespeare Apaixonado”, o famigerado bode expiatório do Oscar de Melhor Filme dos anos 90 -, mas ao se propor ao desafio de incorporar parte do processo por trás de “The Room” e assumir o papel principal e a direção o cineasta também torna seu protagonista em uma figura totêmica, que representa de uma forma ou de outra a trajetória de todo comediante em Hollywood. O idealizador do “pior filme de todos os tempos”, afinal, passa por um dilema de reconhecimento similar (mas em nada idêntico) ao dos atores do gênero da comédia, que se veem reduzidos em prestígio quando comparados aos dramas que imperam na indústria desde sua origem – e nestes momentos mais evidentes a obra parece ambicionar a jornada de provação de “O Mundo de Andy”, que também tratava de uma figura midiática polêmica e extravagante.
Franco está longe de ser um Milos Forman e seu Tommy Wiseau definitivamente não é um Andy Kauffman, mas este ato de identificação que o diretor comete quase que inconscientemente ajuda a explicar no filme o que leva “The Room” e seu idealizador serem itens de tamanha admiração pela nova classe artística e trabalhadora de Hollywood. Embora esteja preso à meta de consagrar os derrotados, graças a essa medida “O Artista do Desastre” se afasta da cinebiografia convencional e da função de mero agrado a uma personalidade e torna-se reflexo do imaginário de uma época e um grupo muito particular no cinema estadunidense – mesmo que o retrato ambicionado pelos realizadores, na verdade, seja outro tempo e espaço.