- Cultura 23.Maio.2018
“Fahrenheit 451”, da HBO, é genérico e se contenta com pouco
Adaptação da obra de Ray Bradbury é uma amálgama de ideias de outras ficções científicas, mas sem nenhum traço de originalidade
Na década em que as fake news estão no centro de todo debate sobre política e sociedade, nada poderia ser mais típico do que termos obras que discutam o revisionismo histórico. A bola da vez é o livro “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, que já havia sido adaptado para o cinema em 1966, pelas mãos de um dos mais importantes cineastas: François Truffaut. A história acompanha um futuro distópico no qual livros são proibidos e os bombeiros trabalham não apagando incêndios, mas queimando qualquer obra literária que seja encontrada. Enquanto o livro de Bradbury, de acordo com o próprio, focava mais na crescente relação da sociedade com a televisão e a perda de espaço dos livros, o filme de Truffaut é focado na implacabilidade de um regime autoritário.
Agora nas mãos de Ramin Bahrani (de “Chop Shop”), “Fahrenheit 451” usa algo do livro, do filme de 66, mas também traz uma amálgama de idéias de outras ficções científicas como “Blade Runner” e “Ghost In The Shell”. O resultado da mistura, porém, é um filme perdido, sem foco, que passa tempo demais criando um universo e suas regras, e acaba esquecendo de desenvolver seus personagens e a história – que são extremamente superficiais por dependerem de elementos muito simples (como um diálogo de 10 segundos) para mudar as trajetórias das vidas de alguns personagens.
No foco do longa está Guy Montag (Michael B. Jordan), bombeiro que tenta seguir os passos de seu superior, Capitão Beatty (Michael Shannon) e se tornar referência no combate à literatura. No mundo de “Fahrenheit 451”, o trabalho dos bombeiros, além de ser idolatrado pela população, é tratado como um reality show bizarro, transmitido por projeções nos prédios da cidade – o que nos lembra diretamente das propagandas que engolem a Los Angeles de “Blade Runner” – até pelo uso de uma fotografia que valorize a escuridão dos cenários em contraste com a alta luminosidade das telas.
Com essa relação, cria-se no mundo de “Fahrenheit 451” uma alegoria para a alienação causada pelo vício nas redes sociais. Esquece-se os livros e a própria história – não será incomum, ao longo da narrativa, o espectador vir os personagens com informações extremamente equivocadas sobre a história americana – e ganha-se a interatividade. Naquele universo distópico, o que alimenta a sociedade não é a informação, mas o ódio. Nas grandes telas encaixadas nos prédios, o que é projetado são as cenas de bombeiros queimando obras de arte e pessoas.
Cria-se no mundo do novo “Fahrenheit 451” uma alegoria para a alienação causada pelo vício nas redes sociais
Quando tenta tecer comentários políticos, “Fahrenheit 451” abraça um lado sem medo. A frase bradada pela população: “time to burn for America again” (hora de queimar pela América de novo), remete diretamente ao slogan de campanha de Donald Trump, “Make America Great Again” (faça da América grande outra vez), o que permite que a obra de Bahrani seja crítica em relação ao atual clima político da América. Não há, porém, uma intenção em amarrar a ideia com a jornada do protagonista, que deseja ter seu direito de escolha – inexistente em uma ditadura como a em que vive.
O grande problema da obra é não saber amarrar seus temas à jornada do protagonista
Já quando tenta trabalhar a relação dos personagens com a arte, o longa pouco consegue fazer. Claro, há um peso em ver partituras de Mozart e poemas de Edgar Allan Poe sendo consumidos pelas chamas, mas por não vermos o impacto da ausência dessas obras naquela sociedade, pouco importa. Por outro lado, é interessante como o filme utiliza seu vilão, Beatty, como um símbolo de hipocrisia: o capitão é o líder dos bombeiros mas, em seu tempo livre, demonstra apreço pela poesia, mostrando como o ódio das autoridades pela arte, na verdade, mais parece uma ferramenta de manutenção do poder por meio do medo – os livros são “vendidos” como obras perigosas, sementes do caos que destruirão os pilares da sociedade.
O grande problema da obra é não saber amarrar seus temas à jornada do protagonista. Montag é um personagem extremamente superficial, tanto por culpa do roteiro quanto pela atuação de Michael B. Jordan. Seu interesse pela criminosa vivida por Sofia Boutella, por exemplo, só existe quando seu chefe, de forma explícita, diz para ele “manter seu pênis dentro da calça”. Não há, portanto, uma naturalidade no desenvolvimento da relação entre os dois personagens. Mais parece um esforço do texto para amarrar núcleos do que um amor genuíno. Já B. Jordan poucas emoções exprime por meio de sua atuação: não há raiva ou medo em sequer um momento do filme, apenas uma feição uniforme que torna seu personagem frio.
Outra relação que poderia ser importante no aprofundamento da psique de Guy Montag é a relação com seu pai. Vemos apenas flashbacks rápidos nos quais Montag recorda dos últimos suspiros de seu pai, mas não há diálogos suficientes para cimentar essa relação ou sequer alguma conexão entre o histórico familiar do protagonista e suas escolhas no presente. Guy é sempre um personagem satisfeito com informações incompletas, o que faz com que a morte de seu pai não tenha peso algum. Seu desconhecimento acerca do passado de seu familiar deveria ser acompanhado por uma enorme sede por este conhecimento – o que poderia, inclusive, ser o elo de ligação entre o personagem e os livros: o desejo por estudo sobre o passado.
Uma adaptação sem propósito e que abraça elementos de outras ficções científicas de forma genérica
O personagem principal, aliás, que deveria ser o mais atuante na obra, passa boa parte da projeção fazendo perguntas ou recebendo ordens. É um protagonista demasiadamente reativo e pouco ativo. Até mesmo sua questão central, que é a possibilidade de fazer suas escolhas próprias – como em certo momento diz Beatty, aquela sociedade não está entre A e B, pois ela não possui escolha nenhuma – é subaproveitada. Guy não parece seguir uma lógica em suas atitudes, fazendo sempre o que lhe é sugerido, seja por seu chefe ou pelos rebeldes que tentam destruir o sistema político que comanda aquele mundo. Pior ainda é constatar que o filme precisa de subterfúgios muito simples para plantar a dúvida sobre seu trabalho na mente do protagonista. Guy muda de ideia com a mesma facilidade com que queima livros: apenas uma pergunta feita por outra personagem é capaz de faze-lo questionar toda a realidade.
“Fahrenheit 451” pode entreter por sua premissa interessante – o que é mérito única e exclusivamente do livro, claro -, mas é um filme autoindulgente, que se contenta com pouco e nada arrisca para ir além de uma adaptação enlatada da obra de Ray Bradbury. Mais parece uma das muitas obras genéricas produzidas pela Netflix. Enquanto os personagens queimam livros, a HBO queima seu dinheiro em uma adaptação sem propósito e que abraça elementos de outras ficções científicas de forma genérica.